Aparece, saindo da escuridão que ainda por pouco tudo
envolve e vejo-a entrar pela capela adentro. Com seu passo calmo dirige-se ao
local de costume e se ajoelha, em oração. É um dos dias em que, ao alvorecer
celebro a santa Missa em Suzana, na missão central e é normal que, chamada pela
voz do pequeno sino, Madalena apareça. Ainda mais depois que o Demba, o marido
dela, faleceu. E lá vão quinze anos. Ela precisa de muita ajuda por parte do
Senhor para continuar a sua caminhada e crescer os filhos no caminho de Jesus.
Todo o mundo ficara surpreendido pela força com que
Madalena defendeu a sua decisão de continuar a viver na casa que o seu
malogrado marido acabava de reconstruir, bonita e sólida, pouco antes de
adoecer. Segundo a tradição da sua etnia, a Jola Felupe, a casa deveria ser
abandonada e os materiais resgatados pelos irmãos do marido os quais
repartiriam entre eles também os filhos enquanto ela teria sido tomada por
algum deles como segunda mulher. É a lei do "Levirato", com seus
aspetos positivos no sentido de garantir que a vida continue, mas que se abatia
como uma machadada sobre as escolhas que Madalena fizera junto com o marido.
Não queria voltar para trás. Nunca aceitaria tal perspetiva!
Demba era um rapaz forte, ativo, dinâmico, trabalhador,
com iniciativa. Madalena, ainda menina, regozijara-se ao saber que Demba a
escolhera como esposa. Ainda não se dava conta do que significaria para ela o
"caminho" que ele tomara: ela tê-lo-ia seguido com ele, não só pela
passividade e pela submissão que desde sempre são apanágio da mulher neste
ambiente, mas, no seu caso, também por outras razões: simplesmente confiava
cegamente naquele jovem e aceitara de se tornar sua esposa. Via-o frequentar a
missão católica, o padre Marmugi, juntamente com seus companheiros e ouvia as
críticas, às vezes duras, que a gente da tabanca fazia acerca de seu
comportamento e de suas escolhas. Naqueles poucos encontros que a tradição lhes
permitia, ele falava do que vinha aprendendo do padre missionário; também lhe disse
que um dia, quando ela também tiver tomado o "caminho" da missão,
eles dois se tornariam "cristãos". Madalena não compreendia muitas
destas coisas que o Demba dizia, mas havia algo que ela segurara e era que, uma
vez entrados naquele caminho, um homem casava uma mulher só e nunca mais a
mandaria embora: era sua mulher por toda a vida!
Isto era na verdade uma coisa nova que também lhe incutia
medo, mas intuía que, para ela, mulher, a vida se apresentava diferente da das
outras mulheres da sua tabanca. Nela muitas eram as mulheres que, depois de
terem vivido anos com um homem e de lhe ter dado filhos, eram postas fora da
casa para dar lugar a outra mulher, talvez mais nova, mas cujo futuro
continuava incerto como o delas. Esperavam que alguém as tomasse como esposas,
naturalmente depois de despedida a mulher "em serviço"; no entanto
labutavam dia a dia para crescer os filhos que o homem a certo ponto levaria.
Demba contava-lhe o que o padre lhes dizia, a saber que
se deviam amar a sério com suas esposas, querendo um o bem do outro, que se
deviam ajudar, que tudo entre eles devia ser em comum, que não se deviam
esconder nada, se deviam respeitar, ele, homem, devia ter respeito para com sua
mulher. Madalena sabia que Demba falava a sério, não brincava não só, mas no
momento certo não deixaria de se comportar mesmo como lhe ia dizendo. Sentia
que o relacionamento com seu homem seria diferente do das outras suas
companheiras com seus maridos, mas não conseguia ter uma ideia clara de como
seria: tudo era tão novo e estranho!
Casaram e foi uma festa! A casa era grande, bonita, mesmo
cheia do arroz que cultivaram juntos nos últimos dois anos de preparação ao
casamento. Era impressionante ver como Demba lavrava, o ritmo com que revoltava
a terra da bolanha: ela própria às vezes não conseguia segurar o passo atrás
dele repicando arroz... Mas agora lá estava ele enchendo a casa e o futuro
aparecia encorajador.
Começaram os
primeiros passos da vida em conjunto. Demba parecia mesmo incansável: nunca
parava, tinha sempre algum trabalho entre as mãos também no tempo seco, quando
trabalhava na Missão. Parecia-lhe porém que, às vezes, fosse um bocado exigente
demais, por exemplo que tivesse a casa sempre bem limpa e asseada, os
indumentos sempre em ordem, que aprendesse a consertar a roupa que vestiam.
Certo dia até saiu com a proposta de os dois aprenderem a ler e a escrever: ela
também, uma mulher, ainda mais uma mulher já casada! E pensar que nem ele
conseguia, ele que era homem e punha naquilo um esforço notável!!...
De qualquer forma esforçava-se de se portar como ele
queria, ainda mais porque ele, à maneira dele, era muito atencioso para com
ela. Já esperava o primeiro filho e Demba estava cheio de atenções para com
ela: não queria que fizesse trabalhos pesados: até chegara ao ponto de
carregar-se ele próprio a lenha no mato e de a trazer para casa em cima da
cabeça! Todo o mundo fazia troça dele, mas ele não se importava e dizia:
"Minha mulher está fazendo o nosso primeiro filho e eu ajudo-a. Assim disse
o padre".
Nasceu Francisca, bonita como uma flor. As "mulheres
grandes" da tabanca e as suas parentes queriam fazer todas as cerimónias
oportunas para encomendar a criança à proteção dos espíritos e dos
antepassados; ela também sentir-se-ia mais à vontade, mas Demba não estava de
acordo. Dizia ele que deviam rezar a Deus como o Padre lhes ensinava, que não
precisava fazer aquilo tudo. Mas as mulheres grandes diziam que a criança iria
morrer se não fizessem tudo quanto a tradição mandava.
Passou bastante tempo nesta situação. Madalena tentava
ganhar tempo e, mesmo na incertidão acerca do que podia acontecer à criança,
procurava dar crédito ao marido, ainda mais porque o próprio padre se
interessava ao seu caso e, quando era preciso, dava os remédios de que a
Francisca precisava.
E veio o segundo filho, um menino, que Demba quis chamar
de João Vintetrês. Madalena não entendia muito daquilo, mas sabia que era o
nome de alguém muito importante, dum homem que era próximo de Deus e
parecia-lhe que nada podia alterar a felicidade que entrara em sua casa.
Mas não era assim.
Francisca ainda queria leite e Madalena a amamentava. Mas
João também mamava e nunca estava satisfeito: o leite não bastava para os dois.
Demba dizia que Francisca devia comer papa de arroz, mas o que fazer se a
criança recusava?
As duas crianças começaram a dar sinais de desnutrição;
Demba insistia, até levantava a voz. Ele foi consultar o padre que lhe explicou
o que deviam fazer, até lhe deu umas papas para a Francisca comer. Mas eram coisas
dos brancos!...
Madalena começou a ter medo, medo de que o que as
mulheres grandes diziam acontecesse na realidade: não fazes as cerimónias aos
espíritos? Teus filhos vão morrer nem poderás ter outros!" Não sabia mais
o que fazer, o medo a paralisava.
Um ataque de paludismo deu cabo de João Vintetrês, já
debilitado. Alguns meses depois foi a vez de Francisca... e a casa ficou vazia.
Era a treva mais negra, não se via saída nenhuma! Demba
às vezes era mudo, não falava, às vezes levantava com ira e a tratava mal, com
dureza. Forte surgiu nela a tentação de sair daquela casa, de ir embora,
abandonar o Demba. Não conseguiria viver mais com aquele homem: dera-lhe dois
filhos e não soubera criá-los! Ou não era porque ele não quis que fizessem as
cerimónias de que falavam as mulheres grandes?
Demba não aguentou mais. Apesar das recomendações do
padre bateu nela e bateu a valer, bateu até que ficou cansado de a bater. E
gritava, rogava-lhe até pragas.
Madalena não reagiu: ficou calma a receber aquelas
pancadas todas até que Demba parou. Sentia-se profundamente humilhada. Estava
preocupada também para o filho, o terceiro, que tinha na barriga e o Demba
ainda não sabia; mas enfim dizia consigo própria que ela merecia mesmo aquilo
tudo, que talvez as duas crianças estariam ainda de vida se ela o tivesse
escutado, se não tivesse deixado o medo apoderar-se dela...
Um pormenor porém não lhe tinha fugido: mesmo enquanto
furiosamente batia nela, da boca do marido nunca saíra expressão alguma que
quisesse dizer: "Vai-te embora, sai da minha casa!". O seu marido
ainda a queria com ele, a seu lado. Um outro teria corrido logo com ela, sem
pensar duas vezes. Demba não! Devia mesmo tentar escutá-lo mais. Soube que o
padre tinha dado uma descompostura ao Demba, repreendera-o duramente diante de
seus companheiros por ter batido na mulher, ainda mais porque mesmo na altura
soubera, pelas mulheres dos colegas de Demba, que ela estava grávida e podia
haver consequências para a criança.
Demba agora não sabia mais como alcançar que Madalena o
perdoasse, receava que ela quisesse ir embora, mesmo naquela altura, quando
havia uma decisão importante a tomar. De que se tratava?
Atendendo ao facto que os anciãos da tabanca
intensificaram as represálias contra o grupo dos que frequentavam missão,
chegando ao ponto de pendurarem uns para os baterem com paus, Demba e colegas
planejavam sair da tabanca e reconstruir suas casas perto da própria missão
católica. O Padre conseguiu o terreno, as casas foram edificadas e só faltava
passar a habitá-las. As mulheres duns colegas do Demba tinham dificuldades,
estavam com medo. Os Anciãos, depois de executados os rituais apropriados,
tinham declarado solenemente que, se fossem habitar naquelas casas, os filhos
morreriam todos e nenhum outro poderia nascer. Demba era preocupado: o que
faria Madalena? Já perdera duas crianças…
Ela tinha-os perdido na tabanca, os seus dois filhos e
começava a se dar conta do facto que talvez sim, era mesmo ela a culpada pela
sua morte, mais do que os espíritos. A criança que ela tinha agora na sua
barriga nasceria na nova casa e ela também, uma vez morando perto da missão,
teria começado a ir escutar o padre e a ouvir seus conselhos juntamente com o
marido: teriam começado uma vida nova. Disse isto a Demba... E foi uma festa!
Assim nasceu Carminda, depois Avelina e a seguir...
Também chegaram as irmãs na Missão Católica. Madalena foi entre as primeiras
pessoas que foram ter com elas. Todos os dias levava à missão as duas crianças
e queria que as irmãs as observassem para lhe dizer o que devia fazer. Era uma
cena comovedora vê-la aparecer todos os dias, mesmo quando voltava cansada pelo
trabalho da bolanha.
Vieram depois outras crianças, regularmente e a casa
ficou mesmo cheia. No entanto nas aldeias em redor nasciam outras pequenas
comunidades e Madalena se encarregava de encorajar as mulheres para que
seguissem seus maridos neste novo caminho. Umas delas foram hospedadas em sua
casa quando faltava pouco ao parto, até que ela própria quis frequentar um
pequeno curso para matronas organizado pela irmã enfermeira. Mas não lhe
bastava. Juntamente com o marido quis frequentar também um curso para se tornar
catequista ou pelo menos ajudante do catequista.
Mas não acabou o sofrimento, de maneira particular depois
da morte do marido. Conseguiu, com a ajuda da comunidade, que a casa ficasse em
pé e desta forma abriu um caminho novo: o da viúva cristã. Umas filhas fizeram
família fora do sacramento do matrimónio e isto foi uma dor para ela.
Só ficaram os últimos filhos, o trabalho é sempre muito e
as bolanhas foram retomadas pelos irmãos do marido, menos uma: a que Demba
resgatou dum terreno alagadiço transformando-o numa nova porção de bolanha:
segundo o direito consuetudinário felupe, aquilo pertence só a quem o fez e a
seus filhos. Não é suficiente, mas a comunidade cristã veio ao socorro com
outras porções de terreno.
Uma coisa está contudo fora de qualquer dúvida: Madalena
não vai voltar atrás e desta forma se tornou um ponto de referência para outras
mulheres mais jovens.
Verdade é que ela nunca conseguiu aprender a ler e a
escrever, mas encoraja as mais jovens para que o façam, e tem resultados. De
qualquer forma lá fica como testemunho o caminho feito juntamente com o marido.
Lembro-me dum seu testemunho num curso de catequistas casados
rurais em 1982. Eles vinham de toda a diocese e representavam diferentes etnias
com suas tradições. Estávamos falando do respeito mútuo entre marido e mulher,
da colaboração e da corresponsabilidade na condução da família. Domingos Ambona
e sua mulher Jinokorut, uma das primeiras colegas de Madalena, acabavam de
falar de como na sua família tudo estava em comum, tudo era partilhado.
"Mas não o dinheiro!" Intervém um dos cursistas: "A mulher não
deve saber quanto o marido ganha!".
Madalena, calmamente, intervém. "Não, a mulher deve
conhecer! Demba, o meu malogrado marido, trabalhava como pedreiro nesta missão.
Cada fim do mês recebia o envelope com o ordenado. Nem o abria. Trazia-o para
casa e juntos contávamos o dinheiro; juntos decidíamos o que gastar e o que
poupar e ele o deixava entregue em minhas mãos. Se precisava de comprar
qualquer coisa, pedia-me o dinheiro; o mesmo fazia eu, apesar de o dinheiro
estar comigo." Lembro que houve um silêncio geral; só depois de um bocado
começaram a chover as perguntas. E as respostas.
Graças a Deus a "reação em cadeia" que começou
então com Madalena e suas companheiras continua a se expandir. Nas demais
aldeias já são bastantes as famílias, nomeadamente as cristãs, em que a forma
de se relacionar entre marido e mulher mudou substancialmente e as mulheres,
melhor valorizadas, tomam iniciativas nunca vistas antes na forma de melhorar a
habitação, na cultivação de hortas para integrar a alimentação e o balanço
familiar.
Também mudou a atitude para com os filhos: enfrentam
sacrifícios não pequenos para lhes proporcionar continuação nos estudos, e isto
não só para os rapazes como também para as moças: privam-se da ajuda delas nos
trabalhos domésticos para que se possam instruir e ter uma vida diferente.
Muitas são também as jovens casadas que frequentaram cursos de alfabetização.
Vê-se mesmo que a chave do desenvolvimento está nas mãos
da mulher, de mulheres como Madalena e suas companheiras: mulheres normais, com
o peso de tradições às vezes discriminatórias; mulheres que sentem desde seus
corações que foram libertadas por dentro pelo Evangelho de Jesus e testemunham
a alegria de ter encontrado, nEle, uma vida nova.
Suzana, 15 de Maio de 1995
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