Vamos tentar agora aprofundar o discurso mais
diretamente no contexto da Igreja e da Missão, no nosso contexto, em que somos
chamados a realizar nossa vocação e missão.
Confesso que a palavra
"inculturação" está a soar ainda um bocado desafinada aos meus ouvidos;
prefiro a expressão do papa "encarnar o Evangelho nas culturas" ou
"evangelização da cultura", como dizia Paulo VI em EN. 20. Sim porque
pelo que vou ouvindo e vendo, tenho às vezes a impressão de que se queira
"constranger" o Evangelho dentro de algo apertado... como vinho novo
em odres velhos, por exemplo. (cf. Mc. 1,40 -- 3,6, part. 2, 21-22; Jo. 2, 1-11, part. 9).
O termo “inculturação”, juntamente com o de
“aculturação” foi usado pela primeira vez em documentos oficiais da Igreja na
Exortação pós-sinodal “Catechesi tradendae”
de 1979, no n. 53 onde se fala na “Incarnação da mensagem nas culturas”. É então recente na linguagem da Igreja quanto
à palavra, mas não quanto à realidade significada. Sempre se falou em “adaptação” (adaptatio), que é a linguagem usada pelo Concílio Vat. II. (Ex.
SC 37; GS 44; AG 22 etc.; cf. EN 63). Como já vimos é desde 1659 que a SCPF falou
em adaptação do missionário e da pregação do evangelho às culturas locais, como
também da forma de as comunidades locais poderem expressar sua fé, o que em
linguagem moderna chamamos respetivamente de “aculturação” e de
"inculturação".
2.1 Quanto à ideia de inculturação referida à
mensagem evangélica, assumimos a que o Papa nos propôs: "A íntima
transformação dos valores culturais autênticos, pela sua integração no cristianismo,
e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas" (Redemptoris Missio 52.53.54).
Um exemplo. Normalmente semeia-se o arroz no
viveiro: a palha é arrancada e jogada fora (valores não autênticos ou
contravalores), o arroz é "repicado" para que, com a água ao pé, o
sol que o aquece, o húmus e o espaço vital a disposição, possa se desenvolver
em cheio e chegar a maturação. (valores autênticos assumidos e transformados).
Mais um exemplo para a segunda parte: a
enxertia, que dá frutos novos, conformes ao rebento que foi enxertado, aproveitando a
força e a pujança da velha árvore, acostumada a terreno, clima, ares, ritmos
das estações... (o Evangelho, enxertado no tronco dum povo, dá frutos evangélicos novos
etc.).
Postas estas premissas, as realidades a
examinar em si não são antes de mais as "tentativas" de inculturação ou os
“gestos” a reproduzir por exemplo na liturgia, mas sim as realidades
“culturais” que ritmam a vida e lhes dão os conteúdos: por ex., a iniciação, o matrimónio,
a família alargada, a doença, o enterro, etc., quer dizer: o que os homens pensaram,
antes de mais, para responderem a determinadas perguntas, para solucionar determinados
problemas e alcançar determinadas finalidades; avaliando até os sucessos e insucessos,
os aspetos positivos e negativos: a filosofia profunda da vida e suas formulações
e manifestações..... (podia-se
dizer: reconhecer como que uma "história da salvação" inscrita
discretamente por Deus nestas tentativas humanas),
A seguir deveríamos examinar o dado revelado,
quer dizer: como Deus veio ao encontro do
homem para responder às questões mais profundas do seu ser e do seu existir;
quais as respostas que Deus ofereceu ou simplesmente acenou, em qual forma
agora estão a ser oferecidas, pela Igreja, aos homens de hoje nos vários
contextos culturais em que a Igreja vive...
Em terceiro lugar deveríamos ver se e como as
respostas de Deus anulam ou completam, desenvolvem e até ultrapassam as que
foram dadas pelos homens; se estão em contradição com elas e porquê, se em vez
estão na mesma linha, nem que seja numa dimensão infinitamente superior... (cf.
Mt. 5, 17-48).
Em quarto lugar: praticamente, o que é que
continua, o que é que deve cessar, o que é que se deve transformar: por ex. no que
respeita ao processo de iniciação, quer debaixo do ponto de vista humano (ainda
teria direito de existir desligado das respostas de Deus, ou ignorando-as por
completo?), quer debaixo do ponto de vista cristão (devemos continuar com sacramentos
(primeira confissão, primeira comunhão, etc.) administrados "pontualmente"
em vez que inseridos num processo, num caminho, pelos vistos: num "caminho
de iniciação"? Devemos continuar com “dicotomias”, fazendo o que é da tradição
e depois repetindo a mesma coisa na igreja, por ex. o matrimónio, etc.)?
Inculturação então o que é que quererá dizer:
- oposição,
com eliminação pura e simples dum dos dois processos, o tradicional ou o cristão?
- justaposição,
que consagraria a "dicotomia" existencial do cristão que não se
resolve a empreender seriamente um caminho novo? (juntando amuletos e cruz…)
- "harmonização"
que tenta salvar o salvável, criando hibridismo e sincretismo?
- "ré-criação"
duma realidade, entendida nas suas raízes profundas, nas suas motivações e finalidades,
nos seus sucessos e nos seus falhanços, nos seus mecanismos de conhecimentos,
meios a disposição e valores inspiradores, para chegarmos a uma realidade
autenticamente cristã e autenticamente africana (por quanto "africana"
seja ainda demasiado generalizante e empobrecedor das realidades particulares, por enquanto mais vivas se
tomadas uma por uma...)?
Há um facto histórico que nos pode ajudar a
perceber como a mensagem cristã, inserida corretamente numa cultura, pode até
modificar profundamente a sociedade. Antigamente na sociedade greco-romana havia
os escravos: sem eles nem se concebia como a sociedade poderia subsistir e como
se conseguiria levar para frente uma certa economia. Com a vinda do caminho
cristão, os escravos, que não gozavam de direito nenhum, aos poucos foram
considerados como pessoas livres (cf. Col. 3,11 "... já não há nem grego
nem judeu, circunciso ou incircunciso, estrangeiro ou bárbaro, escravo ou livre, mas apenas Cristo, que é tudo em
todos". Veja-se também a carta a
Filemon; Gal. 3,28): a sociedade mudou, os costumes mudaram e a vida
continuou, apesar de não haver mais escravos.
NB. Temos que lembrar o que foi dito ao longo
do Sínodo para a África: “A finalidade da inculturação não é de evitar todas as
dificuldades inerentes à prática da vida cristã, mas sim de indicar uma maneira
de viver o Evangelho com mais autenticidade, de forma a resultar convencedora e
contagiosa” (Hyacinthe Thiandoum, Relatio
ante disceptationem, L’Oss. Rom. I pag. 17). Doutra forma seria querer ser
cristãos sem a cruz. (cf. Fil. 3,17-18; 1Cor. 1,17).
2.2 Costuma-se dizer que o exemplo mais
completo de "inculturação" é a Incarnação: o Filho de Deus que se fez
homem, num contexto histórico e cultural bem definido, o Povo de Israel. É, de
facto, o fundamento teológico da própria inculturação, como diz o papa na EA
60, onde lembra Gal.4,4: "A o chegar a plenitude dos tempos, Deus enviou
seu Filho. Ele nasceu de uma mulher, submetido à Lei" e podemos continuar
com Paulo que diz ao versículo 5: "para resgatar aqueles que estavam
submetidos à Lei, a fim de que fossemos adotados como filhos". De facto
não há quem não veja que Jesus não ficou preso pela sua cultura: assume a
cultura hebraica, mas ao mesmo tempo a transcende e a critica, como que a faz
"florescer", rebentar assim como fez “arrebentar” o sepulcro em que
foi deposto, como a semente faz arrebentar o chão para se desenvolver; e levou
a “cultura” de seu povo ao amadurecimento a que era destinada:
- explica o sentido profundo das escrituras,
património cultural e religioso do Povo acerca do sábado (Mc. 2,27-28); acerca
da misericórdia (Mt. 12,5-7; cf. Lc.15); acerca do ser "filhos de Abraão" (e quer dizer acerca da identidade fundamental do Povo Hebreu) (Jo. 8, 31-59); acerca do maná (não
só celebrado na memória histórica dos feitos que marcaram o nascimento do Povo,
mas sim sinal de algo que deve vir e que é o valor autêntico que o maná
prefigurava...) Jo. 6....48-51); acerca do Messias, o elemento fundante a
identidade do Povo da promessa, cuja figura era desvirtuada e reduzida a um
sonho puramente humano.... etc. etc.......
- não pertence a nenhuma classe oficial dos
“grandes” hebreus... Passa por ser um marginalizado, frequentador de
marginalizados, em polémica com sua cultura, ou pelo menos com os que, nos moldes
culturais de então, eram os "grandes"; no entender deles é um
autêntico "desculturado" que se deve eliminar (cf. Mc.1,40-44; 2,
1-3.6).
- e torna-se "estrangeiro" no seu
próprio povo: não sabemos de onde ele é" (Jo.9,29) e é rejeitado
(Jo.9,22). Mas ele vem de Deus (Jo.16,30) assim como os profetas diziam. E do
alto da Cruz diz ao Pai: “Tudo está realizado” (Jo.19,30).
- Por sua vez os discípulos, depois do
Pentecostes, têm consciência de serem o "verdadeiro Israel", os que
encarnam a autêntica cultura israelita levada ao amadurecimento a que estava
destinada. Veja-se Estêvão que "ataca", no entender dos grandes, os
alicerces da cultura hebraica, e veja-se também Paulo (fil. 3, em particular
3,3 : somos nós os verdadeiros circuncidados, os verdadeiros Hebreus filhos de
Abrão, cf. col.2,11;) Nem por isso: são expulsados das sinagogas, do próprio
povo (a 19ª “Bênção” contra os “dissidentes” introduzida pelos fariseus de
Yamnia depois da destruição do Templo no ano 70). Cf. o comentário de Mateus e
Camacho a Mt, p.27, e, em paralelo Act.3,18-26; 4,9-35 (cfr.2,43).
Mt.1,19. Para o evangelista Mateus… “Maria
representa a comunidade cristã em cujo seio nasce a nova criação pela obra
contínua do Espírito. A dúvida de José reflete então o conflito interior dos
israelitas fiéis diante da nova realidade, a comunidade cristã. Pela rutura com a
tradição que adverte nesta comunidade (= nascimento virginal, sem pai ou modelo
humano/judaico), José/Israel deve repudiá-la para permanecer fiel à tradição;
por outro lado não tem nenhuma motivação real para a difamar, sendo patente sua
conduta irrepreensível. O anjo do Senhor, que representa o próprio Deus,
resolve o conflito convidando o Israel fiel a aceitar a nova comunidade porque
aquilo que dela nasce é obra de Deus. Aquele Israel então compreende a novidade
do messianismo de Jesus e aceita a rutura com o passado” (Mateos e Camacho, Il vangelo di Matteo, Assisi 1995, p.27).
A primeira comunidade cristã, de cultura hebraica,
inculturou a semente do Evangelho e esta, por sua vez, fez
"arrebentar", em sentido positivo, a própria cultura. Não foi num momento, apesar do estrondo do Pentecostes,
mas foi uma caminhada contínua, marcada por intervenções do alto: Filipe
levado a Samaria, Pedro a Cesareia, Barnabé e Paulo a Antioquia, etc. Nem
sempre foi fácil: não só pelas perseguições vindas do exterior, mas também pelas resistências no
interior da própria Igreja. É um processo que percorre todo o livro dos Atos
dos Apóstolos, e até todo o Novo Testamento, desde a questão Judaica do chamado
"primeiro concílio” de Jerusalém até ao Apocalipse, que nas cartas às sete
igrejas dá conta das dificuldades, dos regressos a caminhos antigos e das
tentações de sincretismo, que podemos até pensar como expedientes para
conciliar o caminho cristão com as exigências da sociedade: não era só entre os
Hebreus que os "da seita do Nazareno" eram postos de fora. O que leva a 1Pt a se dirigir "aos que
vivem dispersos como estrangeiros no Ponto, na Galácia, Capadócia, Ásia e Bitínia"
(cf.1Pt. 2,11); já não cabemos na cidade terrena, já transcendemos nossa própria cultura, vivemos
com estrangeiros e peregrinos (cf. Hebr. 13,14; Act. 2,37-40; Heb.1,1-4)... porque
"a nossa cidadania está no céu, de onde esperamos ansiosamente o Senhor Jesus Cristo
como Salvador" (Fil.3,20).
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