A caminho do sínodo diocesano
p. José Fumagalli
Vamos agora reunir duma forma mais ordenada
as intuições e os exemplos a que nos
referimos até agora, e vamos fazê-lo
escutando o magistério da Igreja. Podemos dizer que a “Magna carta” da
inculturação do Evangelho como è entendida pela igreja se encontra na encíclica
Redemptoris Missio, e vamos então ver
o que o Papa nos diz.
Ao processo de incarnação do Evangelho nas
culturas dos povos destinatários o papa dedica três números: 52, 53, 54,
dizendo respetivamente o que é inculturação quem são os agentes da mesma quais
as condições para que seja correta e eficaz.
52. Falando em Inculturação o papa diz que é
algo de urgente, mas que se atua em tempos longos (por bem três vezes o papa
sublinha este tempo de "demora").
a. Define o processo pelo qual se atua o que
inculturação significa:
1. a íntima transformação dos valores
culturais autênticos (cf. Mt. 5,20ss.; Jo. 4,19-22)
pela sua integração no cristianismo. (Paulo
e o seu tormento: os Judeus, seus irmãos! Rom. 9, 1-8; 10, 1-4. Ele era plenamente inserido na sua cultura,
partilhava as acusações a Estêvão: blasfemou! Fil. 3,1-4a. E nós somos até
devedores aos Hebreus, que nos transmitiram a Palavra de Deus!).
2. e o enraizamento do cristianismo nas
várias culturas
b. comenta e explica:
- é um processo com fases sucessivas
- com movimento dúplice, que investe tanto a
cultura quanto a Igreja
- pelo qual a cultura floresce na Igreja e se
renova, se transcende
- a Igreja resplandece com novos aspectos
(Paulo VI a Kampala, 1969).
- Deve-se salvar
- a especificidade: é caminho de Deus para o
homem, inverso ao dos homens que
procuram a Deus. (Ex. Mediator Dei et
hominum, homo Christus Jesus, 1Tim. 2,5;
Pléroma Col. 2, 6-11, etc.)
- a integridade da fé (ex. Matr. monogâm.)
(sem descontos: cf. Ap. 22, 18-19) (EN. 32)
Citando Ev.Nun. ao n. 20, sublinha que o Evangelho transmite os próprios valore às
culturas renovando-as A PARTIR DE DENTRO,
"partindo sempre das pessoas
e voltando sempre ao relacionamento das
pessoas entre elas e com Deus"
- efeitos produzidos:
- a Igreja universal se enriquece com novas
expressões e valores...
- conhece e exprime cada vez melhor o
mistério de Cristo
- é estimulada a uma renovação contínua.
c. indica quem deve assumir e realizar:
Missionários, comunidades, pastores ( a seguir, n° 53)
54. Indicações e condições para uma correcta
inculturação.
a.
Princípios
- compatibilidade com o Evangelho ( os gestos
o que dizem? O que devem anunciar?)
- comunhão com a Igreja universal (ver os
particularismos dos gestos até cá na Guiné, por exemplo na forma de indicar a
altura de animais e de pessoas...)
b.
Perigos:
- alienação, pelo desrespeito
- supervalutação: temos que ter atenção,
porque a cultura não deixa de ser produto do
homem e, como tal, está marcada pelo pecado.
NB. Há mais um perigo, que foi denunciado no
Sínodo para a África: o de querer ser
cristão sem problemas, sem choques, sem
aquelas rupturas e separações em que fala
AG.13; é o que Paulo chamaria de
"inimigos da cruz de Cristo" (cf. Fil. 3, 18);
c. tempos
- é expressão não de teorias, mas sim da
experiência cristã da comunidade (ver n. 53), por isso precisa duma
"incubação" da mensagem evangélica no próprio seio da comunidade, de
demora para que amadureça (são precisos nove meses para que nasça uma
criança...)
- deve envolver toda a comunidade, o Povo de
Deus com seu "sensus fidei"
- é preciso saber esperar e ter esperança
(cf. Jac. 5, 7-8).
53. Os agentes da incarnação do Evangelho nas
culturas.
A. Os missionários
Devem inserir-se e, para isso
aprender a língua dos destinatários
conhecer as expressões mais significativas da
sua cultura
descobrindo seus valores por experiência
direta
em vista de poderem anunciar de maneira
crível e frutuosa (é condicio sine qua
non: "só poderão... através..".). É o que chamámos mais
propriamente de "aculturação".
O papa usa quatro verbos que “balizam” o
trabalho dos missionários neste campo:
compreender
estimar
promover
evangelizar
o que lhes permite que se tornem
interlocutores válidos, graças a um estilo de vida em que é possível ler o
testemunho evangélico a solidariedade com o povo em definitiva: fidelidade a
Deus e fidelidade ao homem. Pelo que podemos afirmar que o primeiro
trabalho dos missionários não é o de curar,
construir, costurar, ensinar, etc. nem mesmo
de anunciar, mas si de se tornarem sinais
inteligentes e inteligíveis, interlocutores
válidos: só depois poderão trabalhar.
É o que foi afirmado cá na Guiné desde 1987
nas primeiras Linhas comuns de pastoral,
ao longo da preparação das quais não poucos
missionários confessaram de não saber por qual mato estavam a andar e onde
podiam encontrar os caminhos certos.
B. Agentes da inculturação, juntamente om os
issionários são:
As comunidades eclesiais em formação, as quais inspiradas pelo Evangelho (ver EN
63 passim) e progressivamente ( a primeira geração geralmente acusa e rejeita.
cf. Fil. 3,4-11; 2Cor. 5, 16-17) exprimem a própria experiência cristã
em modos e formas originais em consonância com suas próprias culturas em
sintonia com as exigências objetivas da fé.
NB. -O que devem exprimir não é algo de
teórico, mas sim a experiência cristã, que, claramente, é suposta ser vivida.
- o que inspira a comunidade cristã a dar
estes passos de inculturação não é reivindicação cultural ou algo parecido, mas
sim o Evangelho, anunciado e acolhido como Palavra de Deus (1Ts. 2,13).
- o papa emprega dois substantivos
"musicais": "consonância" e "sintonia", de que o
segundo, que se refere às exigências objectivas da fè, é mais vinculante do que
o primeiro!...
Nada de improvisação:
- trabalhar a nível de conferências
episcopais
- em conjunto com a Igreja Universal
- tendo presente os precedentes históricos ao
longo dos séculos.
Obs. Pensemos um bocado na grande questão
judáica, nas igrejas da África do norte,
etc... e também no que nos relata o NT das
experiências variadas das primeiras
comunidades:
- quatro Evangelhos, diferentes entre eles
(DV 19: "Os autores sagrados... escreveram os quatro Evangelhos.... tendo
em conta o estado das igrejas...")
- as cartas de Paulo, em diferentes contextos
culturais e eclesiais
- os Actos dos Apóstolos e a variedade de
situações que nos apresentam
- os Padres Apostólicos... os Símbolos, os
Ritos...
Isso tudo indica-nos o caminho para
assentarmos as bases duma atitude, duma pesquisa e duma formação permanente
neste campo.
NB. Uns problemas práticos e habituais que se
devem discutir. A título de exemplo:
- Os critérios de grandeza e de
respeitabilidade exigidos pelos anunciadores ou pelos
presbíteros nativos: será mesmo o ser
reputado "grande" o que abre o caminho junto dos auscultadores? Não
será melhor situar o carisma-ministério de Padre dentro do contexto eclesial, e
só mediatamente no meio ambiente cultural? Não será também esta uma forma de "renegar
a si mesmo" e aos critérios puramente humanos?
É iluminante, a este respeito, a experiência
de Paulo:
- a Atenas tenta uma aculturação bem
meditada, planejada e conduzida, com uma resposta desconcertante.
- quando envereda pelo caminho de Corinto,
aproximando-se dum meio ambiente
totalmente diferente do de Atenas, muda
também de estratégia: a lição de Atenas lhe valeu, e ele se apresenta pobre,
sem força e sem sabedoria. Diz em 1Cor.2, 1-5: "Irmãos, eu mesmo, quando
fui ter convosco, não me apresentei com o prestígio da oratória ou da sabedoria
para vos anunciar o mistério de Deus. Entre vós eu não quis saber outra coisa a
não ser Jesus Cristo, e Jesus crucificado. Estive no meio de vós cheio de
fraqueza, receio e tremor; a minha palavra e a minha pregação não tinham brilho
nem artifício para seduzir os ouvintes, mas a demonstração residia no poder do
Espírito, para que acrediteis, não por causa da sabedoria dos homens, mas por
causa do poder de Deus." (cf.1Cor.1,17).
Ou queremos cair no que foi lamentado até no
Sínodo Africano de 1994? Dom Polycarp Pengo, Arcebispo de Dar-es-Salam, depois
de ter falado na dicotomia em que os cristãos africanos vivem diante de
situações que ameçam gravemente a vida humana, como uma doença grave ou a
morte, e que è provocada também no caso de esterilidade no matrimónio, diz: “Em
todo o processo de inculturação, Cristo e seu
Evangelho devem ter a prioridade; deve-se
lhes dar o primado absoluto. Se não nos
basearmos saldamente neste princípio, acabaremos
por batizar somente as instituições culturais que tanto sofrimennto, medo e
angústia provocaram na conceção da vida tradicional do povo. Desta forma
despojaríamos a mensagem evangélica de seu poder salvífico e libertador” (L’Osservatore Romano, I, p.30)
- Os gestos e os ritos a "assumir",
por ex. no enterro: devemos ver o que poderia "sobreviver" da nossa
cultura, colhendo gestos com significado ambíguo, ou tirando-lhes o
significado, tornando-os assim não manifestações culturais mas sim de simples
folclore? Ou devemos escolher gestos e palavras mais aptos a anunciar que
Cristo venceu a morte e nos trouxe a vida que não acaba? Queremos proclamamos a
morte ou a ressurreição? E então quais gestos podemos assumir capazes de
anunciar o que devemos? Se não têm esta capacidade, como poderíamos modificá-los?
E há gestos comuns a mais etnias, de forma que possam ser assumidos a nível
duma certa área
(Conferência episcopal)? É lembrar sempre os
dois princípios básicos:
- fidelidade ao evangelho
- comunhão com a Igreja.
Por ex. no casamento: Sempre em felupe diz-se
que o homem "nayab", toma a mulher, apodera-se dela e que
a mulher "nassoño" babu
annyn âu. Ainda não consegui analizar ao fundo este
radical, usado na forma verbal média, mas inclui a ideia de se encostar, quase
a dizer que a mulher só consegue ser mulher se é tomada, como que em
propriedade, pelo homem. No casamento cristão, baseados na forma com que a
própria lingua felupe chama o homem e a mulher (num pé de igualdade com
diferentes funções), resolvemos dizer que os dois "kuyabore",
usando o recíproco: tomam-se um ao outro, com pares direitos e deveres.....
Em presença de tantos ritos, gestos e
conceções do casamento quantas são as etnias
presentes no chão da Guiné , o que é que
devemos fazer? Escolher uns deixando outros? É que há gestos e sinais que para
certas etnias são "estrangeiros" tanto quanto os que vêm da "tera
branku". E então o que fazer?
Dom Joseph Edra Ukpo, bispo de Ogoja, na
Nigéria, no Sínodo da África disse que
seria bem procurar um "mínimo comum
denominador" exatamente no que a Igreja nos
propõe... Por exemplo, no meio felup
decidimos assumir as alianças, porque eles já
sabem que é o casamento das alianças que é
indissolúvel...
E assim por diante, com serenidade e com
muita liberdade frente às tradições em que os próprios cristãos que compõem a
igreja local cresceram.
Sem esquecer que desde o começo da aventura
da Salvação ressoaram as palavras ditas a Abrão: "Sai da tua terra, do
meio de teus parentes, da casa de teu pai, e vai para a terra que eu te
indicarei..." (Gen. 12,1). Sem desprendimento não há serenidade para poder
avaliar e julgar como deve ser.
Não podemos esquecer o que o Papa e os
Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II
apontaram... Ainda falando na conversão
inicial a Cristo eles dizem: ".. sob a acção da graça de Deus, o neo-convertido
inicia um caminho espiritual, no qual, participando já pela fé no mistério da morte
e ressurreição, passa do homem velho ao homem novo perfeito em Cristo. (cf.
Col. 3, 5-10; Ef. 4, 20-24). Esta passagem, que implica uma progressiva mudança
de mentalidade e costumes, deve manifestar-se e desenvolver-se com as suas
consequências sociais, pouco a pouco ao longo do tempo do catecumenato. Como o
Senhor, em Quem se crê, é um sinal de contradição (cf. Lc. 2,34; Mt. 10,
34-39), o homem convertido experimenta não raras vezes ruturas e separações,
mas também alegrias que Deus dá sem medida (cf. 1Tes. 1,6).” (Ad Gentes, 13).
4.
Umas indicações práticas:
4.1. Desde a conclusão do Sínodo especial
para a África, na Mensagem final os Bispos nos disseram: "Entre as outras
condições fundamentais para que ( a mensagem evangélica) toque na vida do povo,
há a tradução da Bíblia em cada uma das nossas línguas africanas e a promoção
duma leitura pessoal e comunitária no contexto africano e no espírito da Tradição"
(n.18). O papa insiste nisto no n.58 da EA: "Para fazer com que a Palavra
de Deus seja conhecida, amada, meditada e conservada no coração dos fiéis (cf.
Lc. 2,19.51), é necessário intensificar os esforços para facilitar o acesso à
Sagrada Escritura, sobretudo através de traduções integrais ou parciais da
Bíblia.... e acompanhadas por indicações de leituras para a oração, o estudo em
família ou em comunidade..... Em resumo, deve-se procurar colocar a Sagrada Escritura
na mão de todos os fiéis, logo desde a sua infância".
NB. O "Vade-mécum" da CERAO até
perspetiva a alfabetização de todos os catecúmenos para que possam ter acesso à
Palavra de Deus (n.59).
4.2. No processo de pesquisa de linhas comuns
de pastoral, que foram promulgadas em 1988, realçou-se, para o pessoal vindo de
fora, a necessidade de terem "intermediários" que os introduzam nas
culturas para se tornarem aptos a empreenderem seu trabalho. Neste sentido falou-se
em formação dos catequistas e demais pessoal. Tendo agora padres e irmãs Guineenses
e catequistas com mais experiência, parece ter chegado o tempo em que o que se
propunha pode enfim ser realizado: o pessoal local e o que veio de fora a
trabalharem em conjunto para segurarem os dois critérios: a fidelidade à mensagem
e a fidelidade ao homem, a consonância com a cultura e a sintonia com a Igreja universal.
Como nos missionários vindos de fora deve
haver o esforço para se inserirem na cultura dos destinatários do anúncio,
assim parece-me bem que deva haver no pessoal local o esforço
- não só de ajudar suas comunidades a
procurar e discernir quais os valores e contravalores de suas culturas para
realizar seu encontro com o Evangelho
- mas também de se aproximar da cultura de
que é revestido o Evangelho que receberam, de forma a discernir cada vez mais
claramente o que é substância do anúncio e o que é mediação cultural.
4.3. "A inculturação, pela qual a fé
penetra na vida das pessoas e das suas comunidades de origem, constitui um
caminho para a santidade." (EA 87).
Houve quem disse que os casos de inculturação
mais bem sucedidos são mesmo os santos. É na vida deles que se realiza a
síntese da mensagem evangélica com a cultura, em novidade de vida. É um convite
e até um imperativo para nós, chamados por Deus a uma vida de consagração e de
missão. É a forma de propor não só a mensagem, mas a sua tradução em vida
vivida. Sem esquecer que as pessoas acreditam mais em testemunhas do que em
mestres, como já apontou Paulo VI na EN. 41. (cf. Vade-mécum 30).
E João Paulo II na EA 136, retomando a RM 90
diz: "Não basta renovar os métodos pastorais, nem organizar e coordenar
melhor as forças eclesiais, nem explorar com maior perspicácia as bases
bíblicas e teológicas da fé: é preciso suscitar um novo 'ardor de santidade'
entre os missionários e em toda a comunidade cristã."
4.4. O terreno em que a semente evangélica é
semeada e assume as feições duma nova cultura é a comunidade, a comunidade
cristã viva, consciente dos valores e dos limites da sua herança cultural, que
empreende um caminho de fé, realiza suas escolhas sem medo de ruturas e separações,
aguenta as consequências das mesmas e se torna sinal na sua forma nova de
viver; uma comunidade que procura todos os meios para partilhar com os irmãos
aquilo que encontrou no caminho de Deus que veio ao nosso encontro. Uma
comunidade capaz de constituir e transmitir uma cultura cristã que se torna
tradição das próprias famílias cristãs.
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