Tema para debate
O presente texto é a tradução
duma comunicação feita em Italiano à
comunidade PIME Guiné Bissau em 30.03.2002
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Já desde o título compreende-se que não se trata aqui de
considerar o “fanado” como um fenómeno a estudar “in vitro”, num ambiente asséptico,
avulso da realidade do dia-a-dia.
Trata-se sim de algo que está profundamente “articulado”
com a vida e com a história de pessoas, famílias e comunidades.
Por outro lado a forma de considerar esta realidade a
partir do ponto de vista cristão não pode ignorar o que nos é oferecido pela Mensagem
que recebemos e de que somos portadores.
Mas no que diz respeito à forma de encarar este tipo de
realidade já fiz referência num pequeno estudo precedente que já foi oferecido
à leitura da comunidade PIME e, ainda precedentemente” num número de
“Inforpime” com o título “Sacramentos da iniciação e tentativas de inculturação”
(Fevereiro de 1999).
E’ bom saber já que na história da missão de Suzana verificou-se o facto seguinte: todos, ou quase todos, os batizados já passaram enquanto rapazes ou até adultos, pela iniciação tradicional antes da sua entrada na comunidade, pelo que a sua pesquisa como também a sua reflexão baseia-se não em informações de segunda mão, mas sim na experiência direta, vivida por cada um deles, confrontada a seguir com os dados da mensagem cristã.
Quando em 1968
teve lugar a iniciação em Suzana, a comunidade ainda não nascera oficialmente,
ainda não havia batizados, (os primeiros são de Março 1969) e só alguns, menos
de vinte, entre os presentes e os ausentes, por razões diferentes e
independentes da escolha do "caminho", não foram ao fanado; entre
eles, cinco dos que frequentavam a missão católica, por razões de segurança
(ameaças de morte) ficaram hospedados na missão. Diga-se desde já que não houve
nenhuma retorsão ou vingança contra todos eles, nem de ordem económica nem de
ordem social.
E’ o que
acontecera precedentemente que nos pode ajudar a compreender os acontecimentos
que se seguiram.
O grupo de pessoas
que desde anos frequentava a missão aos poucos fora definindo-se e tornando-se
estável. Tratava-se de um pequeno grupo que a este ponto já estava constituído
e resolvera deixar de frequentar as cerimónias tradicionais para enveredar
decididamente pelo caminho cristão.
A tabanca reagira
com toda una série de represálias (estamos num meio 99% jola felupe), incluindo
espancamento físico e ameaças de morte para os filhos. Foi isto que causou o
afastamento e a saída da tabanca do primeiro núcleo, o que deu origem a S. Maria,
o bairro “cristão” que não nasceu pela escolha deles nem do padre, mas pela
necessidade de sobreviver. Estávamos nos anos 1964-65. Quando eu cheguei, em
1968 logo após a conclusão do fanado, S. Maria contava seis casas: eram os que
foram diretamente ameaçados.
(NB. As ameaças
não eram só “teóricas”: o chefão era o famigerado João Huloma, alferes dos commandos felupe ao serviço dos
Portugueses, protagonista já naquela altura de vários massacres pela Guiné fora.
Aliás já alguma criança de Santa Maria morrera “misteriosamente”).
Os homens que
viriam depois a serem os primeiros cristãos sabiam que no “fanado” estás
completamente à mercê dos “grandes” e que é naquela ocasião que por parte
destes “grandes” há “ajustes de contas”
a respeito dos quais nunca ninguém terá a coragem de abrir inquéritos
que possam lesar certos “segredos”: sempre a cada iniciação houvera mortes e
nem sempre claras.
Com todas as
ameaças de que foram objeto, aos de Santa Maria não lhes pareceu prudente
entregarem-se mãos e pés aos indivíduos que já os tinham atado e espancado
publicamente sem que houvesse alguma reação de qualquer autoridade: aceitaram a
sua situação de “excomungados” e ficaram fora do fanado.
Ninguém porém lhes
tirou bolanhas ou animais ou algo mais: simplesmente “saíram do caminho dos
antigos para pegarem outro”.
Cerimonia de saída do fanado em Iale, Varela (2004) |
A coisa tornou-se
mais clara para mim muito tempo depois por causa do que aconteceu na tabanca de
Ejin, em 1975, mas que eu vim saber só em Janeiro 2002, a saber: uma das
primeiras ameaças feitas aos que estavam entrando no caminho cristão (os
primeiros batizados de Ejin são de 1980 e o fanado foi em 1996) foi exatamente
a respeito do fanado: a tabanca não os aceitaria no fanado, eram praticamente
expulsados; porém, como quase todos eles já tinham ido ao fanado, claramente a
ameaça visava seus filhos. A culpa deles então não era o “não terem ido ao
fanado”, mas sim o terem “deixado o caminho dos antigos”. E tais ameaças foram
repetidas também no caso das outras comunidades: sinal de que eles eram privados
de seus direitos.
Foi mesmo em Ejin
que se deu o caso do Kutujenuió, um homem com seus 80 anos, um dos anciãos
encarregados do fanado. Acusado de não ter impedido seus filhos de entrarem no
caminho da missão, foi degredado e expulsado da tabanca. Ele foi viver em casa
do filho mais velho, acabou por se batizar e faleceu, contente, em 1984.
São factos que
iluminam e nos ajudam a compreender o contexto em que vamos desenvolver nossa
reflexão.
No mês de Novembro
de 1981, em ocasião dum curso de formação para os nossos catequistas,
empreendemos a reflexão duma forma sistemática e oficial, coral, em todas as
comunidades. O assunto era: As comunidades cristãs de Suzana e seu
relacionamento com a iniciação tradicional”, mais especificadamente:
“Participação ao fanado por parte dos filhos dos cristãos”.
Logo surgiu uma
primeira indicação: ou todos sim ou todos não.
Procedemos com
calma, a pequenos passos, discutindo primeiro com os nossos catequistas e
anciãos das comunidades nas nossas reuniões mensais que na altura fazíamos
peregrinando de comunidade em comunidade. Nem sempre o assunto estava agendado,
mas sempre aparecia, até porque Kassolol devia ter o fanado logo em 1987:
dávamos contudo o tempo para que falassem no assunto a nível de toda a respetiva
comunidade na catequese ordinária, comunicando os passos dados às outras comunidades.
Num primeiro momento os homens exigiram que as mulheres fossem excluídas da pesquisa, visto tratar-se dum assunto exclusivamente “masculino” na mentalidade tradicional felupe. Uma parte consistente do grupo inclinou para a participação dos filhos no fanado. Logo respondi que não podia aceitar a conclusão. Não por aquilo que dizia, mas porque não representava conclusão nenhuma: ainda não tinha havido discussão, e ainda por cima eles tinham excluído as mulheres da consulta.
Tudo estava fora
da perspetiva cristã: quer a própria reunião, quer a conclusão que dela brotou
por dois motivos: os candidatos à iniciação eram filhos não só dos homens, mas
também das mulheres que então tinham direito de serem perguntadas e de darem
seu parecer a respeito de seus filhos; aliás o casamento cristão, que dos dois
faz um, exigia mesmo isso; etc. etc.
Volvidos uns
meses, na segunda reunião em que se falou do fanado, as mulheres estavam
presentes e atacaram em forças. Não queriam estar presentes na discussão para
carpir segredos, mas porque os filhos eram também delas além do que dos pais e
o problema devia ser tratado a nível de família.
Mais ainda as
mulheres lembraram que elas tinham sido capazes de tomar decisões graves, como
a de não ir mais ao cerco da maternidade tradicional, mas de ter o bebé em casa
(com a assistência da irmã), ou no hospital. A reação da tabanca tinha sido
furiosa, foram chamadas com nomes feios, foram insultadas de forma atroz, suas
casas foram danificadas com gestos que traziam uma mensagem clara: saiam desta
terra, não vos queremos mais por aí. Elas aguentaram, não cederam: desta forma
abriram caminho para as outras mulheres da tabanca, que começaram a vir dar à
luz em casa dos cristãos ou no hospital, em condições higiénicas melhores, com
assistência qualificada de matronas. Reduzindo assim drasticamente a taxa da
mortalidade no parto.
Os homens ficaram
surpreendidos e não encontraram respostas. A conclusão foi: os nossos filhos
não irão ao fanado,
Logo rejeitei a
conclusão. "Porque não aceitas? Não aceitaste o sim, não aceitas o não: o
que é que queres?" "Que pesquisem com mais seriedade, escutando
também a Palavra de Deus: a conclusão foi apressada demais. Eu não tenho
resposta: os filhos são vossos, o fanado é um facto vosso e as consequências
duma decisão serão vocês que as deverão aguentar. Eu só posso ajudar a
pesquisar sem esquecer a ajuda da Palavra de Deus.
Graças à
intervenção decidida das mulheres, havia mais vontade de pesquisar e refletir.
Foi elaborado um esquema para a pesquisa, a análise e a avaliação, como por
exemplo: o que é propriamente o fanado, qual a sua finalidade, qual è a sua
origem, o que é que traz de positivo, quais os aspetos que podem ser julgados
menos positivos ou até negativos, o que é que podia ser melhorado; qual o
impacto sobre o caminho cristão como eles o viam à luz da Palavra de Deus, da
catequese e da sua própria experiência pessoal; como é que uma eventual
participação dos cristãos seria vista pela restante parte da população da
tabanca, etc….
Sugeri que, onde
fosse possível, fossem perguntar os grandes entre os grandes para terem
notícias históricas sobre as origens e a configuração do fanado nas suas
tabancas: sabia que teriam feito descobertas interessantes que eles nem
suspeitavam, por exemplo que muitos elementos não eram nada antigos e foram
importados a partir de outras etnias.
(A coisa resultou
numa grande maravilha: por exemplo com
os de Kassolol, para os quais o fanado vinha da noite dos tempos, mas eu sabia
que não remontava a antes dos meados do século 19: e a informação foi-lhes dada
mesmo certa.)
Resultaram porém
outros aspetos iluminantes. Por exemplo resultou que no último fanado
precedente a famosa transmissão das “tradições e códigos de comportamento” fora
muito limitada, até que nalguns casos os anciãos nem tinham falado porque não
confiavam mais nos jovens (que começavam a fugir-lhes das mãos, também por
causa da escola…); pelo que estes jovens sabiam o mesmo que sabiam antes do
fanado; também em certos grupos toparam em castigos e vinganças, ao passo que
noutros grupos as coisas correram de forma bastante pacífica.
A avaliação geral
a que se chegou com esta pesquisa, (que levou cerca de cinco anos seguidos) quando, em 86, na véspera do fanado de
Kassolol, foram juntados os elementos recolhidos, foi a seguinte:
- os aspetos
negativos superavam os positivos
- a iniciação, a preparação
para a vida hoje em dia tem muitas outras exigências, além das que foram
“concentradas” no fanado felupe;
- para a nossa
gente, nós, os cristãos, demos um passo para frente e os não cristãos estão
esperando que façamos outros passos para virem atrás de nós, nem que apareça o
contrário: a nossa ida ao fanado queria dizer voltar para trás e reduzir a zero
todo o caminho de emancipação dado até agora;
Do ponto de vista
cristão surgiu também o seguinte:
ao longo do fanado
somos obrigados a cumprir cerimónias e a fazer gestos que colocam de lado Jesus
como único Mediador entre nós e Deus, e nos não queremos isto, vai claramente
contra a nossa fé; (seríamos obrigados a disfarçar….)
- Para nos dispor
e preparar à vida (que já é uma vida NOVA) não temos só sinais postos pelos
homens, mas sim sinais que o próprio Deus nos deu, os Sacramentos, através dos
quais é Ele próprio que vem ao nosso encontro e nos enriquece de vida: não
podemos fingir que não existam!
- Dissemos, e
continuamos proclamando que encontrámos uma VIDA NOVA: se voltarmos atrás
fecharíamos a porta da vida na cara dos que queriam vir atrás de nós porque nos
dizem logo: já sabemos, vocês encontraram uma vida nova, assim dizem; mas
quando se trata de fazer algo de sério para esta vida, vocês se lembram que a
vida a temos nós, e não o “caminho do branco”: o que evidentemente reduziria a
zero toda e qualquer tentativa de evangelização.
A Ejin
acrescentaram o seguinte: os nossos irmãos é que sempre nos ameaçaram dizendo
que nunca mais nos aceitariam no fanado, até expulsaram Kutujenuió sem respeito
nenhum para a sua “grandeza” e nós vamos entregar os nossos filhos em suas
mãos?
Mas o argumento
que cortou a cabeça ao toiro e que subjaz a todos os outros è o seguinte: o Felupe
vê o caminho dos antigos como uma coisa só, um “inteiro” que se aceita ou se
recusa “in toto”, globalmente: não é possível deixar uma parte e assumir outra:
ou tudo, ou nada: deixas um pedaço? Deixas tudo: não vais ter os pés em dois
caminhos. (visão "holística" da coisa)
Assim: se voltares
ao fanado, deves assumir todo o resto do caminho antigo e deixar aquele em que
porventura te meteste; caso contrário és alguém em quem não se pode confiar,
dizes uma coisa e fazes outra. No caso de quereres sair do caminho dos antigos,
isso è contigo, estás fora da nossa comunidade.
Isso parece
explicar também a atitude dos de Ejin e a expulsão (injustificada) de
Kutujenió: a visão “holística”, global da realidade: pertences ou não pertences
ao caminho dos antigos, não há descontos.
Porquê então as
represálias contra os cristãos? Não podiam deixá-los ir pelo seu caminho?
Afinal não era mesmo muita gente.
Aqui há o problema
dos cristãos “trânsfugas” os que querem desandar mas não querem assumir suas
responsabilidades e então carregam as eventuais culpas sobre os outros.
Eles foram meter
os anciãos contra os cristãos “irredutíveis”, os que “faltam de respeito às
tradições”.
São os próprios
anciãos que o dizem agora, mas sempre em privado, não publicamente: “Nós não
sabíamos”, e acrescentam que aqueles cristãos que voltaram ao fanado os
enganaram, porque não assumiram o caminho como eles pensavam, mas logo depois
do fanado sumiram; eles veem que deixaram a Missa e as demais reuniões dos
cristãos, mas nem aparecem aos ritos religiosos do caminho dos antigos; então
não são dignos de fé porque estão entre dois caminhos e não apanham nenhum, não
se apoiam nalgo mais consistente, superior à condição simplesmente humana. Já
há entre os anciãos quem diga: “Melhor vocês, nem que tenham deixado o nosso
caminho, porque pelo menos sabemos que encontraram um caminho que é mesmo um
caminho e seguem pela frente”.
Contudo há um
outro resultado que veio da reflexão e da decisão que dela brotou: uma maior
consideração pelo caminho da iniciação cristã e pelos sacramentos da iniciação
para os filhos dos cristãos, inseridos num caminho que lhes confere uma
identidade, marca uma pertença e envolve toda a comunidade, o que è evidente de
maneira particular na celebração do Sacramento da Confirmação. Mas a este
respeito veja-se o artigo acima apontado (que talvez irei propor a seguir
Suzana 30.03.2002 Pe.
Zé Fumagalli
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Acréscimo, aquando
da tradução para português (Maio 2015)
1- Persiste a
cantiga segundo a qual os cristãos felupes não levaram os filhos ao fanado
porque, na altura do fanado de Suzana em 1998, o Pe. Zé os impediu. Simplesmente
ridículo e fruto de má-fé e recusa de informação. Porque então desde 1987
Kassolol, Katon, Ejin fizeram o mesmo e ninguém levantou-se para dizer tal mentira?
Porque a coisa saiu só quando foi a vez de Suzana?
2- E’ verdade em vez que a pesquisa acerca da preparação
do jovem felupe ao casamento nos desvendou novos segredos e redimensionou
notavelmente a importância do fanado na vida da comunidade: a verdadeira
iniciação é a tal preparação ao longo de seis anos a partir da declaração da
noiva: ela veio antes do fanado e subsiste independentemente dele.
Até se pode dizer que o fanado ainda não encontrou uma
colocação certa no universo cultural felupe e no processo de amadurecimento do
jovem ao longo de sua vida. Parece ser algo que sobreveio e ainda agora não foi
bem integrado na cultura, mas sim justaposto.
Mas isto è objeto de outras pesquisas. Pe. Zé.
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