quarta-feira, 16 de novembro de 2016

3. A INCULTURAÇÃO: diretrizes do Magistério



A caminho do sínodo diocesano 
p. José Fumagalli 

Vamos agora reunir duma forma mais ordenada as intuições e os exemplos a que nos
referimos até agora, e vamos fazê-lo escutando o magistério da Igreja. Podemos dizer que a “Magna carta” da inculturação do Evangelho como è entendida pela igreja se encontra na encíclica Redemptoris Missio, e vamos então ver o que o Papa nos diz.
Ao processo de incarnação do Evangelho nas culturas dos povos destinatários o papa dedica três números: 52, 53, 54, dizendo respetivamente o que é inculturação quem são os agentes da mesma quais as condições para que seja correta e eficaz.

52. Falando em Inculturação o papa diz que é algo de urgente, mas que se atua em tempos longos (por bem três vezes o papa sublinha este tempo de "demora").
a. Define o processo pelo qual se atua o que inculturação significa:
1. a íntima transformação dos valores culturais autênticos (cf. Mt. 5,20ss.; Jo. 4,19-22)
pela sua integração no cristianismo.  (Paulo e o seu tormento: os Judeus, seus irmãos! Rom. 9, 1-8; 10, 1-4. Ele era plenamente inserido na sua cultura, partilhava as acusações a Estêvão: blasfemou! Fil. 3,1-4a. E nós somos até devedores aos Hebreus, que nos transmitiram a Palavra de Deus!).
2. e o enraizamento do cristianismo nas várias culturas
b. comenta e explica:
- é um processo com fases sucessivas
- com movimento dúplice, que investe tanto a cultura quanto a Igreja
- pelo qual a cultura floresce na Igreja e se renova, se transcende
- a Igreja resplandece com novos aspectos (Paulo VI a Kampala, 1969).
- Deve-se salvar
- a especificidade: é caminho de Deus para o homem, inverso ao dos homens que
procuram a Deus. (Ex. Mediator Dei et hominum, homo Christus Jesus, 1Tim. 2,5;
Pléroma Col. 2, 6-11, etc.)
- a integridade da fé (ex. Matr. monogâm.) (sem descontos: cf. Ap. 22, 18-19) (EN. 32)
Citando Ev.Nun. ao n. 20, sublinha que o Evangelho transmite os próprios valore às
culturas renovando-as A PARTIR DE DENTRO, "partindo sempre das pessoas
e voltando sempre ao relacionamento das pessoas entre elas e com Deus"
- efeitos produzidos:
- a Igreja universal se enriquece com novas expressões e valores...
- conhece e exprime cada vez melhor o mistério de Cristo
- é estimulada a uma renovação contínua.
c. indica quem deve assumir e realizar: Missionários, comunidades, pastores ( a seguir, n° 53)

54. Indicações e condições para uma correcta inculturação.
a. Princípios
- compatibilidade com o Evangelho ( os gestos o que dizem? O que devem anunciar?)
- comunhão com a Igreja universal (ver os particularismos dos gestos até cá na Guiné, por exemplo na forma de indicar a altura de animais e de pessoas...)
b. Perigos:
- alienação, pelo desrespeito
- supervalutação: temos que ter atenção, porque a cultura não deixa de ser produto do
homem e, como tal, está marcada pelo pecado.

NB. Há mais um perigo, que foi denunciado no Sínodo para a África: o de querer ser
cristão sem problemas, sem choques, sem aquelas rupturas e separações em que fala
AG.13; é o que Paulo chamaria de "inimigos da cruz de Cristo" (cf. Fil. 3, 18);
c. tempos
- é expressão não de teorias, mas sim da experiência cristã da comunidade (ver n. 53), por isso precisa duma "incubação" da mensagem evangélica no próprio seio da comunidade, de demora para que amadureça (são precisos nove meses para que nasça uma criança...)
- deve envolver toda a comunidade, o Povo de Deus com seu "sensus fidei"
- é preciso saber esperar e ter esperança (cf. Jac. 5, 7-8).

53. Os agentes da incarnação do Evangelho nas culturas.
A. Os missionários
Devem inserir-se e, para isso
aprender a língua dos destinatários
conhecer as expressões mais significativas da sua cultura
descobrindo seus valores por experiência direta
em vista de poderem anunciar de maneira crível e frutuosa (é condicio sine qua non: "só poderão... através..".). É o que chamámos mais propriamente de "aculturação".
O papa usa quatro verbos que “balizam” o trabalho dos missionários neste campo:
compreender
estimar
promover
evangelizar
o que lhes permite que se tornem interlocutores válidos, graças a um estilo de vida em que é possível ler o testemunho evangélico a solidariedade com o povo em definitiva: fidelidade a Deus e fidelidade ao homem. Pelo que podemos afirmar que o primeiro trabalho dos missionários não é o de curar,
construir, costurar, ensinar, etc. nem mesmo de anunciar, mas si de se tornarem sinais
inteligentes e inteligíveis, interlocutores válidos: só depois poderão trabalhar.
É o que foi afirmado cá na Guiné desde 1987 nas primeiras Linhas comuns de pastoral,
ao longo da preparação das quais não poucos missionários confessaram de não saber por qual mato estavam a andar e onde podiam encontrar os caminhos certos.

B. Agentes da inculturação, juntamente om os issionários são:
As comunidades eclesiais em formação, as quais inspiradas pelo Evangelho (ver EN 63 passim) e progressivamente ( a primeira geração geralmente acusa e rejeita. cf. Fil. 3,4-11; 2Cor. 5, 16-17) exprimem a própria experiência cristã em modos e formas originais em consonância com suas próprias culturas em sintonia com as exigências objetivas da fé.
NB. -O que devem exprimir não é algo de teórico, mas sim a experiência cristã, que, claramente, é suposta ser vivida.
- o que inspira a comunidade cristã a dar estes passos de inculturação não é reivindicação cultural ou algo parecido, mas sim o Evangelho, anunciado e acolhido como Palavra de Deus (1Ts. 2,13).
- o papa emprega dois substantivos "musicais": "consonância" e "sintonia", de que o segundo, que se refere às exigências objectivas da fè, é mais vinculante do que o primeiro!...
Nada de improvisação:
- trabalhar a nível de conferências episcopais
- em conjunto com a Igreja Universal
- tendo presente os precedentes históricos ao longo dos séculos.
Obs. Pensemos um bocado na grande questão judáica, nas igrejas da África do norte,
etc... e também no que nos relata o NT das experiências variadas das primeiras
comunidades:
- quatro Evangelhos, diferentes entre eles (DV 19: "Os autores sagrados... escreveram os quatro Evangelhos.... tendo em conta o estado das igrejas...")
- as cartas de Paulo, em diferentes contextos culturais e eclesiais
- os Actos dos Apóstolos e a variedade de situações que nos apresentam
- os Padres Apostólicos... os Símbolos, os Ritos...
Isso tudo indica-nos o caminho para assentarmos as bases duma atitude, duma pesquisa e duma formação permanente neste campo.

NB. Uns problemas práticos e habituais que se devem discutir. A título de exemplo:
- Os critérios de grandeza e de respeitabilidade exigidos pelos anunciadores ou pelos
presbíteros nativos: será mesmo o ser reputado "grande" o que abre o caminho junto dos auscultadores? Não será melhor situar o carisma-ministério de Padre dentro do contexto eclesial, e só mediatamente no meio ambiente cultural? Não será também esta uma forma de "renegar a si mesmo" e aos critérios puramente humanos?
É iluminante, a este respeito, a experiência de Paulo:
- a Atenas tenta uma aculturação bem meditada, planejada e conduzida, com uma resposta desconcertante.
- quando envereda pelo caminho de Corinto, aproximando-se dum meio ambiente
totalmente diferente do de Atenas, muda também de estratégia: a lição de Atenas lhe valeu, e ele se apresenta pobre, sem força e sem sabedoria. Diz em 1Cor.2, 1-5: "Irmãos, eu mesmo, quando fui ter convosco, não me apresentei com o prestígio da oratória ou da sabedoria para vos anunciar o mistério de Deus. Entre vós eu não quis saber outra coisa a não ser Jesus Cristo, e Jesus crucificado. Estive no meio de vós cheio de fraqueza, receio e tremor; a minha palavra e a minha pregação não tinham brilho nem artifício para seduzir os ouvintes, mas a demonstração residia no poder do Espírito, para que acrediteis, não por causa da sabedoria dos homens, mas por causa do poder de Deus." (cf.1Cor.1,17).
Ou queremos cair no que foi lamentado até no Sínodo Africano de 1994? Dom Polycarp Pengo, Arcebispo de Dar-es-Salam, depois de ter falado na dicotomia em que os cristãos africanos vivem diante de situações que ameçam gravemente a vida humana, como uma doença grave ou a morte, e que è provocada também no caso de esterilidade no matrimónio, diz: “Em todo o processo de inculturação, Cristo e seu
Evangelho devem ter a prioridade; deve-se lhes dar o primado absoluto. Se não nos
basearmos saldamente neste princípio, acabaremos por batizar somente as instituições culturais que tanto sofrimennto, medo e angústia provocaram na conceção da vida tradicional do povo. Desta forma despojaríamos a mensagem evangélica de seu poder salvífico e libertador” (L’Osservatore Romano, I, p.30)
- Os gestos e os ritos a "assumir", por ex. no enterro: devemos ver o que poderia "sobreviver" da nossa cultura, colhendo gestos com significado ambíguo, ou tirando-lhes o significado, tornando-os assim não manifestações culturais mas sim de simples folclore? Ou devemos escolher gestos e palavras mais aptos a anunciar que Cristo venceu a morte e nos trouxe a vida que não acaba? Queremos proclamamos a morte ou a ressurreição? E então quais gestos podemos assumir capazes de anunciar o que devemos? Se não têm esta capacidade, como poderíamos modificá-los? E há gestos comuns a mais etnias, de forma que possam ser assumidos a nível duma certa área
(Conferência episcopal)? É lembrar sempre os dois princípios básicos:
- fidelidade ao evangelho
- comunhão com a Igreja.

Por ex. no casamento: Sempre em felupe diz-se que o homem "nayab", toma a mulher, apodera-se dela e que a mulher "nassoño" babu annyn âu. Ainda não consegui analizar ao fundo este radical, usado na forma verbal média, mas inclui a ideia de se encostar, quase a dizer que a mulher só consegue ser mulher se é tomada, como que em propriedade, pelo homem. No casamento cristão, baseados na forma com que a própria lingua felupe chama o homem e a mulher (num pé de igualdade com diferentes funções), resolvemos dizer que os dois "kuyabore", usando o recíproco: tomam-se um ao outro, com pares direitos e deveres.....
Em presença de tantos ritos, gestos e conceções do casamento quantas são as etnias
presentes no chão da Guiné , o que é que devemos fazer? Escolher uns deixando outros? É que há gestos e sinais que para certas etnias são "estrangeiros" tanto quanto os que vêm da "tera branku". E então o que fazer?
Dom Joseph Edra Ukpo, bispo de Ogoja, na Nigéria, no Sínodo da África disse que
seria bem procurar um "mínimo comum denominador" exatamente no que a Igreja nos
propõe... Por exemplo, no meio felup decidimos assumir as alianças, porque eles já
sabem que é o casamento das alianças que é indissolúvel...
E assim por diante, com serenidade e com muita liberdade frente às tradições em que os próprios cristãos que compõem a igreja local cresceram.
Sem esquecer que desde o começo da aventura da Salvação ressoaram as palavras ditas a Abrão: "Sai da tua terra, do meio de teus parentes, da casa de teu pai, e vai para a terra que eu te indicarei..." (Gen. 12,1). Sem desprendimento não há serenidade para poder avaliar e julgar como deve ser.
Não podemos esquecer o que o Papa e os Bispos, reunidos no Concílio Vaticano II
apontaram... Ainda falando na conversão inicial a Cristo eles dizem: ".. sob a acção da graça de Deus, o neo-convertido inicia um caminho espiritual, no qual, participando já pela fé no mistério da morte e ressurreição, passa do homem velho ao homem novo perfeito em Cristo. (cf. Col. 3, 5-10; Ef. 4, 20-24). Esta passagem, que implica uma progressiva mudança de mentalidade e costumes, deve manifestar-se e desenvolver-se com as suas consequências sociais, pouco a pouco ao longo do tempo do catecumenato. Como o Senhor, em Quem se crê, é um sinal de contradição (cf. Lc. 2,34; Mt. 10, 34-39), o homem convertido experimenta não raras vezes ruturas e separações, mas também alegrias que Deus dá sem medida (cf. 1Tes. 1,6).” (Ad Gentes, 13).

4. Umas indicações práticas:
4.1. Desde a conclusão do Sínodo especial para a África, na Mensagem final os Bispos nos disseram: "Entre as outras condições fundamentais para que ( a mensagem evangélica) toque na vida do povo, há a tradução da Bíblia em cada uma das nossas línguas africanas e a promoção duma leitura pessoal e comunitária no contexto africano e no espírito da Tradição" (n.18). O papa insiste nisto no n.58 da EA: "Para fazer com que a Palavra de Deus seja conhecida, amada, meditada e conservada no coração dos fiéis (cf. Lc. 2,19.51), é necessário intensificar os esforços para facilitar o acesso à Sagrada Escritura, sobretudo através de traduções integrais ou parciais da Bíblia.... e acompanhadas por indicações de leituras para a oração, o estudo em família ou em comunidade..... Em resumo, deve-se procurar colocar a Sagrada Escritura na mão de todos os fiéis, logo desde a sua infância".

NB. O "Vade-mécum" da CERAO até perspetiva a alfabetização de todos os catecúmenos para que possam ter acesso à Palavra de Deus (n.59).

4.2. No processo de pesquisa de linhas comuns de pastoral, que foram promulgadas em 1988, realçou-se, para o pessoal vindo de fora, a necessidade de terem "intermediários" que os introduzam nas culturas para se tornarem aptos a empreenderem seu trabalho. Neste sentido falou-se em formação dos catequistas e demais pessoal. Tendo agora padres e irmãs Guineenses e catequistas com mais experiência, parece ter chegado o tempo em que o que se propunha pode enfim ser realizado: o pessoal local e o que veio de fora a trabalharem em conjunto para segurarem os dois critérios: a fidelidade à mensagem e a fidelidade ao homem, a consonância com a cultura e a sintonia com a Igreja universal.
Como nos missionários vindos de fora deve haver o esforço para se inserirem na cultura dos destinatários do anúncio, assim parece-me bem que deva haver no pessoal local o esforço
- não só de ajudar suas comunidades a procurar e discernir quais os valores e contravalores de suas culturas para realizar seu encontro com o Evangelho
- mas também de se aproximar da cultura de que é revestido o Evangelho que receberam, de forma a discernir cada vez mais claramente o que é substância do anúncio e o que é mediação cultural.
4.3. "A inculturação, pela qual a fé penetra na vida das pessoas e das suas comunidades de origem, constitui um caminho para a santidade." (EA 87).
Houve quem disse que os casos de inculturação mais bem sucedidos são mesmo os santos. É na vida deles que se realiza a síntese da mensagem evangélica com a cultura, em novidade de vida. É um convite e até um imperativo para nós, chamados por Deus a uma vida de consagração e de missão. É a forma de propor não só a mensagem, mas a sua tradução em vida vivida. Sem esquecer que as pessoas acreditam mais em testemunhas do que em mestres, como já apontou Paulo VI na EN. 41. (cf. Vade-mécum 30).
E João Paulo II na EA 136, retomando a RM 90 diz: "Não basta renovar os métodos pastorais, nem organizar e coordenar melhor as forças eclesiais, nem explorar com maior perspicácia as bases bíblicas e teológicas da fé: é preciso suscitar um novo 'ardor de santidade' entre os missionários e em toda a comunidade cristã."

4.4. O terreno em que a semente evangélica é semeada e assume as feições duma nova cultura é a comunidade, a comunidade cristã viva, consciente dos valores e dos limites da sua herança cultural, que empreende um caminho de fé, realiza suas escolhas sem medo de ruturas e separações, aguenta as consequências das mesmas e se torna sinal na sua forma nova de viver; uma comunidade que procura todos os meios para partilhar com os irmãos aquilo que encontrou no caminho de Deus que veio ao nosso encontro. Uma comunidade capaz de constituir e transmitir uma cultura cristã que se torna tradição das próprias famílias cristãs.

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