A caminho do Sínodo diocesano
P. José Fumagalli
Reflexões
iniciais sobre o assunto.
A primeira coisa com que deparei o chegar a
Bissau em 1968 foi que as pessoas com que devia lidar eram diferentes das que
encontrara até então e o eram não só pelo que aparecia à primeira vista: eram
diferentes por dentro. O encontro com uma pessoa era um encontro com uma
cultura diferente: língua, forma de pensar e de se exprimir: eu tornara-me
"infante", quer dizer: o que não sabe falar. Devia reaprender a me relacionar.
O discurso sobre a cultura não é um discurso académico, teórico, mas
eminentemente prático e "indispensável": temos que nos tornarmos “interlocutores"
para podermos "dialogar"; e isto quer por parte do missionário vindo
de fora que entra em contacto com as pessoas a que foi enviado, quer por
qualquer evangelizador que não queira ser "um evangelizador qualquer",
enfim quer por parte das mesmas pessoas "destinatárias" da mensagem
evangélica que entram em contacto com uma mensagem que, historicamente, aparece
já revestida duma experiência histórica e então duma cultura (e se enriqueceu;
cf. RM 53). A mensagem evangélica "quimicamente pura" não existe,
nunca existiu.
- É inegável que uma ação evangelizadora,
para ser eficaz, deve ser "inculturada" (a seguir veremos o
significado desta palavra); se não for, fica em perigo de fracassar, como
árvore sem raízes ou com raízes curtas demais. (ex. o Baobabe/Cabaceira).
Ecclesia
in Africa 78: Uma fé que não se torna cultura é uma fé
não plenamente acolhida, nem inteiramente pensada, nem fielmente
vivida...."
NB Neste campo também a história é mestra: A
Igreja esteve florescente na África do Norte nos primeiros séculos e deu
mártires e grandes teólogos e Santos: os mártires de Cartago (Perpétua e
Felicidade), Tertuliano, S. Cipriano, S. Agostinho e até três papas (Vítor I, Melquíades
e Gelásio I); mas primeiro com os Vândalos e depois com os muçulmanos deixou de
existir.
A Igreja do Egipto, Núbia (Sudão) e Etiópia
deu mártires (“era martyrum”, a partir do ano 283 à perseguição de Diocleciano),
monges (Antão, Pacómio), grandes catequistas na escola de Alexandria, teólogos
(Atanásio, Cirilo), santos e nunca deixou de existir, nem debaixo da tempestade.
Quais as razões? Além das sociais e
políticas, apontam-se as seguintes (Lineamenta
Sínodo Africano pp. 8-11; Stéphanos II Ghattas Patriarca Alex. Dos Coptos. Oss.Rom. 1°, p.89; J.Baur "Storia del cristianesimo in Africa” EMI,
p.35).
A Igreja
do Maghreb:
- divisões e heresias
- mas sobretudo: não afundou raízes na
cultura púnica e bérbere: era uma igreja latina,
latina ficou e latina acabou.
A Igreja
do Egipto, Núbia, Etiópia:
- também tiveram divisões e heresias
(monofisismo, nestorianismo)
- mas tiveram os textos sacros, a liturgia, a
catequese e a expressão da fé em suas línguas e culturas (Durante a perseguição
de Décio, em 250 os livros litúrgicos coptos foram queimados: o que nos diz que
já se tinha desenvolvido uma liturgia local!)
Por outro lado já a nível do NT temos pistas
para aproximar a mensagem da cultura (=
aculturação), para que a fé por sua vez venha
a ser inculturada - Act. 14, 15-18 (Listra e a religião da natureza) - Act.
17,22-34 (Atenas: Paulo cita o poeta Arato de Soli, cidade a menos de 40 km de Tarso)
NB. Em ambos os casos o resultado não é garantido, há sempre o imponderável da
resposta pessoal...)
- Outro exemplo: os Evangelhos: porquê são
quatro? Já há tentativas de "aculturação", de entrar em diálogo com
situações diferentes.... (cf. DV.19).
Vamos articular esta reflexão em três
momentos:
1. A
Cultura: elementos e dinâmicas.
2. A
Inculturação: no contexto da Igreja e da actuação pastoral. Seu fundamento
teológico e padrão: a incarnação
3. Tentativas
de inculturação:
3. A. Umas
realidades antropológicas e teológicas
3. B. Os sacramentos.
1. A CULTURA: elementos e dinâmicas
1.1.
Para falarmos em inculturação deveríamos falar primeiro em Cultura. Do que é
que se trata? Entre as definições, às vezes discordantes, das demais "escolas",
vamos seguir o Concílio Vaticano II: ele dá uma descrição.
" A palavra
cultura, no sentido lato, designa tudo aquilo com que o homem
- apura e
desenvolve os inúmeros dotes do corpo e do espírito com que procura submeter o universo
pelo conhecimento e pelo trabalho;
- torna mais
humana a vida social, tanto na família, como em toda a comunidade civil,
mediante o
progresso dos costumes e instituições;
- e, finalmente,
formula, comunica e conserva, nas suas obras, no decurso dos tempos, as grandes
experiências espirituais e as aspirações maiores do homem, para que sirvam ao progresso
dum grande número e, até, de todo o género humano. (GS 53)
Daqui se segue que a cultura humana inclui
necessariamente um aspeto histórico e
social, e que a palavra "cultura"
assume frequentemente um sentido sociológico e
etnológico. Neste sentido se fala de
pluralidade de culturas. É que estilos de vida diversos e escalas de valores
diferentes encontram a sua fonte na maneira particular de usar as coisas, de
trabalhar, de se exprimir, de praticar a religião, de se comportar, de
estabelecer leis e instituições jurídicas, de fazer progredir as ciências e as
artes e de cultivar a beleza. Assim, a partir dos costumes recebidos, se forma
o património próprio de cada grupo humano. É também deste modo que se constitui
um determinado meio histórico, no qual todo o homem, de qualquer nação ou
idade, se insere e do qual tira os valores que lhe permitem promover a
civilização" (GS.n.53).
O Evangelho deve entrar nestas culturas dos
homens, ou melhor, atingir pessoas concretas que vivem em seu contexto
histórico e cultural. Para que a novidade de vida aconteça e se possa exprimir,
deve haver uma mutação, do velho para o novo; concretamente devem mudar
determinados parâmetros de comportamento, como nos diz a Evangelii Nuntiandi:
"...para a Igreja não se trata só de pregar o evangelho
em faixas geográficas cada vez mais vastas ou a populações cada vez mais
extensas, mas também de alcançar e quase como que subverter através da força do
evangelho os critérios de juízo, os valores determinantes, os pontos de
interesse, as linhas de pensamento, as fontes inspiradoras e os modelos de vida
da humanidade que estão em contraste com a Palavra de Deus e com o seu desígnio
de salvação" (EN.19; cf. EA 59.78; EN 20)
Confesso que estas palavras de Paulo VI me
chocaram, me marcaram e foram um grande estímulo para mim. Comecei a pensar com
mais assiduidade no que é que eu podia fazer para cumprir, para ajudar este
grandioso processo de amadurecimento da humanidade toda uma vez colocada em
contacto vital com o Evangelho: claro, a partir do pequeno ponto histórico-geográfico
em que eu me encontro a viver, com as pessoas concretas com que lido todos os dias.
Para já se tratava de compreender a ideia de cultura e a sua possibilidade de
sofrer alterações. Tentei aplicar a esta operação o mesmo método que me
permitira aprender a música e, a seguir, o Criolo, o Felupe e... boa parte da
arte mecânica. Mais do que um método "académico" sempre recorri a um
método empírico, baseado na prática: desmonto uma máquina, um motor, uma
partitura musical, uma expressão linguística, reparo nas várias partes de que
consta, tento perceber qual a sua respetiva função e a seguir remonto tudo e...
funciona! Mais do que um método "dedutivo", que vai do universal ao particular,
procurei aplicar o indutivo, que vai do particular ao universal.
1.2. Em palavras um bocado mais simples,
perguntei-me: o que é a cultura, do que é que é feita em seus elementos, no que
é que se deve mexer para que uma cultura se transforme, amadureça, se abra a um
futuro e a uma vida melhor?
Retomo aqui uma reflexão que estou
conduzindo, desde anos com as comunidades da minha missão, num meio ambiente
rural.
a. Podemos assumir a ideia de cultura como:
conjunto das respostas às perguntas postas pela própria existência, com seus
problemas, desde os mais simples até aos mais fundamentais. Respostas dadas
pelos homens e por eles legadas à sua descendência. Tais respostas dependem de:
a) Conhecimentos
(de qualquer género: empíricos, religiosos, míticos, filosóficos,
científicos,
técnicos etc...)
b) meios
a disposição para resolver dificuldades (também de qualquer género...)
c) valores
assumidos como critérios de escolha, à luz dos quais as escolhas são
feitas.
NB. É intuitivo que tais respostas variam com
o variar, principalmente dos conhecimentos e dos meios ao dispor, nem que os
valores subjacentes permaneçam fixos; a variação vem a ser ainda mais
pronunciada quando mudam os próprios valores!.... Exemplos: leprosos, gêmeos,
"cambanças" e pontes, etc..
A. Leprosos.
A lepra, com seu aspeto devastador e sua facilidade de contágio, sempre foi
vista como um grande perigo para a comunidade, perigo a que não se encontrava
remédio se não afastando, expulsando ou até eliminando o doente para eliminar a
doença (ou eliminar o "maldito" para eliminar a
"maldição"). Entre os Felupes: colocava-se o doente numa espécie de
recinto, no espírito do "sambun
asu" (= o fogo) e deixava-se morrer de
inédia. Quando morre não se faz choro, nem se diz que morreu (nakete)
mas sim que "perdeu-se" (najime), no sentido de morte "ritual", "sagrada"
(ou "maldita"). Agora já não se faz isso. O que é que mudou?
- conhecimentos: sabemos que é doença e se pode curar;
- meios: podemos alcançar Cumura, onde há um
hospital para isso e os doentes são curados.
- Não
mudou o VALOR:
a vida da comunidade deve ser defendida, agora como antigamente.
O meio de
defesa mudou: já não é a morte, mas sim a cura. O Felupe continua
sendo Felupe, que defende a vida do seu povo, apesar de "inutilizar"
o espírito do "sambun
asu".
·
Os conhecimentos e os meios: já sabemos que está a nosso alcance a
alimentação artificial, na missão se encontra, como também no hospital ou nas
farmácias. E é ver a alegria e o orgulho com que as mães mostram os gémeos a
crescerem saudáveis: o valor não mudou, só é alcançado doutra forma e com
mais resultado. O Felupe continua sendo Felupe, apesar de não suprimir mais os
gémeos.
C. Cambanças.
A seis quilómetros da missão de Suzana, em direcção ao Sul, há, agora, um rio,
que divide Suzana das tabancas de Ejin, Jihunk, Eossor, Ehlalab, Bohlol. O rio
é largo, mínimo 70 metros, com uma rápida. Também há lagartos. Antigamente a
passagem era assegurada por uma canoa. Os que queriam vir a Suzana por razões
económicas, comerciais, de abastecimento, para escola ou até para tratar
crianças em perigo, eram submetidos a inúmeros transtornos. Esperas intermináveis,
a canoa se perdeu infinitas vezes, muitas vezes foi necessário dar uma volta de
15 quilómetros ou regressar a casa sem ter podido alcançar Suzana, com a consequência
que muitas crianças morreram, e poderiam ser salvas... Também havia, na margem
do rio, do lado de Suzana, um pequeno lugar de culto ao espírito para que defendesse
dos assaltos do lagarto. Quem queria passar deixava um punhado de arroz, ou
vinho de palma ou algo mais para alcançar proteção. Nem sempre foi assim. Há
memória de que em tempos passados o atual rio não passava de um riacho e a
gente passava a pé. Isto é das primeiras décadas do século vinte, quando a
tabanca de Ehass, que estava entre Ejaten e Kassolol, migrou para a atual sede,
em Ehlalab. Com o passar do tempo a água da maré e a das chuvas levaram terra e
o rio se aprofundou e veio a ficar mais largo; nele se instalaram hipopótamos e
lagartos. Diante da nova situação de dificuldade que se instalou, os felupes
recorreram aos meios que conheciam e estavam a seu alcance: a canoa para passar
e a cerimónia ao "iran" ou "espírito" para alcançar o
objetivo. O que aconteceu? Alguém proibiu os ritos propiciatórios a tal
espírito? Não, simplesmente a população, animada pela comunidade cristã, organizada
pela Cáritas paroquial e com o apoio da própria Missão, construiu uma ponte
para passagem de peões, bicicletas e motas. Já não se fala mais em canoas, em marés,
em ritos ao espírito da cambança... só porque a "resposta" à
necessidade de passar o rio mudou de forma: já se passa sem perigo e a qualquer
hora. Mudaram os meios, quer físicos (a ponte), quer em relação a
certos "valores"
(as cerimónias ao espírito protector). Apareceu como mais positivo o espírito
de iniciativa e de solidariedade, que permitiu a construção duma ponte graças
aos meios ao alcance e ao trabalho em conjunto. Mas o Felupe continua sendo
Felupe.
Umas pequenas aplicações.
A sociedade Felupe não tem classes. Pelo menos é o que se diz. Concordo em
falarmos em classes do tipo marxista,
basadas na economia. De facto porém há, segundo outros critérios. Aceitamos que
não há aquele tipo de classes: todos ao
mesmo nível (na realidade há umas exceções,
mas dependem de causas não
económicas). Mas como é que conseguem isso?
Simples.
Ninguém deve ter mais do que os outros: os
recursos a serem partilhados são
de tal maneira escassos que qualquer
açambarcamento reduziria os outros à
miséria. Se alguém, por sua iniciativa ou
por um conjunto de condições demasiado
favoráveis, consegue "levantar" a
sua condição acima da dos outros é
simplesmente eliminado. Aparecem umas
pessoas que lhe dizem: "Se antes do fim
da chuva tu não desapareceres, desaparecerá
algum dos teus filhos". E o coitado
procura a maneira de
"desaparecer". Tenho nomes e datas de pessoas que se
deixaram morrer desta forma. E o nível de
pobreza geral foi reconstituído, numa
"autenticidade cultural" que até
mete espanto.
Como "evangelizar" aquilo?
A.
O
valor permanece: ninguém deve enriquecer de forma a subtrair aos outros o que
lhes è necessário para viverem.
B.
Os
meios mudam:
1. Tens que trabalhar todos os
"talentos" que recebestes, e então tens que ter iniciativa,
trabalhar, produzir, ter rendimento.
2. Lembra porém que Deus criou o que vês não só
para ti, ma sim para
todos, e não
tens o direito de reter o que é destinado a outros.
3. Além disso tens o mandamento do amor que te
impele a partilhar, não só, mas se não deres de comer a quem tem fome, Ele te
perguntará na altura certa...
C.
O
resultado também muda: houve um progresso na forma de produzir os bens; houve
algo a mais a partilhar; o nível económico geral subiu um bocado proporcionando
um melhoramento da qualidade dos serviços à vida. "Nivelamento" sim,
mas para cima e para frente.
Outro exemplo.
A vida è o resultado dum "equilíbrio"
de forças ou, se quisermos, duma "Harmonia". Qualquer atentado a este
equilíbrio, culpável ou não deve ser neutralizado. Acontece uma desgraça, uma
doença, uma mortandade, etc. O equilíbrio foi alterado. Deve haver um culpado,
alguém que causou aquilo. Há a procura febril do culpado. Uma vez
"encontrado" (seja ou não provado que foi ele) deve
"expiar", "pagar dívida" para que o equilíbrio seja reestabelecido
(ele ou os seus descendentes...). A seguir tudo volta a ser como dantes.
Desapareceu o perigo, a vida continua. Não se fala mais em causas: o que se desprendera
foi reatado e ámen (Em Felup usa-se mesmo o vero KOK = ligar, atar). Tudo fica
relegado no PASSADO.
Como evangelizar?
E' verdade que todo pecado tem também uma
dimensão social, mas o relacionamento causa-efeito não é assim mecânico nem
personalizado (cf. Jo.9,2-3). Então não deve haver procura do
"culpado"? Procura das causas naturais ou não que produziram efeito
negativo deve haver, para ser posto remédio, em vista do "FUTURO". No
caso de haver responsabilidade pessoal, e então culpa pessoal, o que se deve
procurar não é só que "pague", mas sim que ele seja
"resgatado" (Mt.18,15). O remédio às causas e a recuperação do homem
deixam entrever um futuro mais tranquilo....
1.3- No encontro de duas culturas e do Evangelho
com uma cultura, interessa-nos, por clareza, distinguir dois aspetos, que podem
ser até dois momentos do mesmo processo: o da "aculturação" e o da
"inculturação". Do que é que se trata?
Vamos proceder por pequenos passos.
- Aculturação: aproximação de uma cultura a
outra
- de pessoa pertencente a uma cultura a outra
pertencente a outra cultura; do missionário a seus interlocutores e então à sua
cultura, aprendendo língua, usos, etc.
- também: da mensagem do Evangelho, que nos
chegou revestida de uma cultura, a pessoas que pertencem a outra cultura,
através de traduções e de outros caminhos que o anúncio do Evangelho pode
tomar.
- Inculturação:
reproduzir na própria cultura e
através da própria cultura algo que,
originariamente, a ela não pertencia. Por
exemplo quando uma comunidade, recebida a
mensagem do Evangelho, consegue interiorizar
o que recebeu, começa a traduzir aquilo na sua vida, em escolhas concretas que
mudam sua maneira de viver, até o re-expressa em fórmulações teológicas e em
formas artísticas próprias, etc.
Podemos fazer o exemplo de umas culturas que
historicamente foram assumidas aqui em chão felupe, como mandioca, bananas,
mangos, cajú, o próprio arroz… que entraram a fazer parte da vida, mudaram uns
costumes e se tornaram quase culturas originais….. Enriqueceu-se a cultura, a
cultivação, os hábitos alimentares, e o próprio produto adquiriu novos sabores
e força…
Sinteticamente, sempre continuando com o
exemplo dos produtos:
- é aculturação quando “importo”, faço chegar
para perto de mim, ao meu alcance mangos, mandioca, bananas e começo a
acostumar-me a comer tais frutos.
- é inculturação quando passo eu próprio a
cultivá-los e faço entrar estas cultivações no meu contexto de vida. E estes
frutos adquirem novo sabor, consoante o terreno, o ar, a água, o meio ambiente
novo em que passam a ser cultivados.
Em contexto de Igreja é desde 1659 que a Congregação
de Propaganda Fide publicou uma Instrução
fazendo obrigação aos missionários de se "aculturarem", apesar de não
ter usado mesmo esta palavra; nas nossas Linhas
de Pastoral de 1988 è recomendada em mais e mais pontos desde o princípio.
No projeto Diocesano de pastoral,
curiosamente ficou esquecida: só se fala em Inculturação. Mas a
"aculturação" é fundamental para um missionário: trata-se de se
tornar "interlocutor" daqueles aos quais foi enviado. E não é uma
exigência só para os missionários, mas sim para qualquer agente da pastoral que
se encontre a atuar num meio ambiente que seja, nem que só em parte, diferente
daquele em que ele próprio viveu.
Trata-se duma coisa elementar em qualquer
tipo de diálogo: escutar antes de falar. Uma observação que nos pode ajudar até
na nossa vida espiritual: "A escuta é o movimento fundamental da oração
cristã, que torna o missionário apto a também escutar os homens, aos quais
acolhe e testemunha o evangelho: uma escuta que
se inicia através do estudo de seus idiomas e
que continua como escuta de suas culturas e de suas expressões religiosas, das
modalidades peculiares - com as quais moldaram sua humanidade - além dos
problemas e dramas históricos e cotidianos por eles vividos" (Luciano
Manicardi, Mundo e Missão, Out. 2004,
p.25 ).
Podia falar também na minha primeira
experiência de "aculturação". Quando cheguei
em Portugal tentei "orientar-me" no
meio dum mundo que, para mim, era novo. Não
me apliquei só a aprender a língua, mas sim
procurei compreender onde me
encontrava, para compreender também não só o
que as pessoas me diziam, mas
também compreender a elas próprias. Além de
ler os jornais todos os dias, tomei um
bocado de recuo: estudei história e
literatura. Lembro-me da visita que fiz, nas
primeiras semanas, ao museu do Carmo. Eu lia
as inscrições latinas, mas não
compreendia ao que é que se referiam. Reparei
num rapazinho que também parava
diante das inscrições, mas parecia-me em
dificuldade. Aproximei-me dele e disse-lhe:
"Olha, amigo, se quiseres eu posso
traduzir o que as inscrições dizem, mas tu me
explicas ao que é que se referem": Foi
assim que ele teve acesso àqueles textos, que
faziam parte da minha cultura e estavam ao
meu alcance, e eu recebi uma data de
informações históricas, de que era
extraordinário conhecedor, que me abriram o
caminho que procurava e me deram até mais
vontade para mais estudos a seguir.
Sempre a mesma Instrução de Propaganda Fide acima mencionada também falou na
exigência de "inculturação" da mensagem evangélica, sempre sem usar
tal palavra, quando diz que os que recebem o Evangelho não podem ser obrigados
a expressarem sua fé nos mesmos moldes a que estava acostumado o missionário.
É bem escutarmos umas expressões desta
"Instrução".
"Não
façam nenhuma tentativa nem procurem de modo nenhum convencer estes povos a
mudar seus usos, sua maneira de viver, seus costumes e tradições se não forem
abertamente contrários à religião e à moral. Não há nada de mais absurdo que
transportar costumes e usos da França, da Espanha ou da Itália ou de outras
partes da Europa para a China. Não se deve levar nada disso tudo, mas sim
deve-se levar a Fé, uma Fé que não rejeita nem ofende a maneira de viver ou os
costumes dum povo, a não ser que sejam perversos e depravados".
Claro que não podia continuar depois do
Batismo o costume do choro do rei dos Papéis de Bissau, de matar quarenta ou
cinquenta escravos que deviam ser sepultados com o rei. De facto o régulo
chamado Bocampolo Có, que se batizou, queria acabar com aquilo: na sua morte,
em 1696, só mataram (contra sua vontade) "...oito ou nove rapazes e
raparigas, costumando quarenta e cinquenta..." (Avelino Teixeira da Mota, As viagens do Bispo D. Frei Vitoriano
Portuense à Guiné, ALFA, 1696, pp. 145,151).
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