quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

DOMINGOS AMBONA

 Figuras de cristãos exemplares
por pe. Zé Fumagalli


Demba e Ambona, dois amigos inseparáveis. Juntos começaram a frequentar a pequena escola da missão de Suzana e juntos passaram a se interessar dos dois brancos recém-chegados na aldeia, dois padres missionários . Observavam-nos em tudo o que faziam e diziam. Ambona tinha o nome que fora dum guerreiro, o herói nacional de Suzana, o que na guerra com Sabutule tinha ganho o duelo com Buhâmul, dando à sua gente a vitória que a salvou da destruição.
O nosso Ambona porém não tinha nada a ver com guerras, pelo contrário. Era m tipo calmo, sereno, reflectia muito, não perdia nem sequer uma palavra do padre quando este explicava o catecismo ou quando contava a história de Jesus. Também sabia repetir o que o padre dizia, naturalmente acrescentando os pormenores que julgava oportunos. Era a ele que os colegas recorriam quando esqueciam alguma coisa e ele, seguro, lhes lembrava o que ocorria e raramente falhava nalguma coisa. Era, por assim dizer, o intelectual da companhia. Trabalhador, claro, como seu amigo Demba, mas sabia fazer render o trabalho para encontrar alguma pausa para reflectir. E rezar. Ele não se retraia como o amigo Demba quando se tratava de falar em público, de explicar o catecismo nem que seja a grupos numerosos. O seu falar calmo, contínuo e convicto conseguia te envolver. Às vezes falando em Jesus, de quanto ele dizia e fazia, acompanhava seu discurso com o brilhar dos olhos, com um sorriso apenas acenado, mas que deixava entrever qu ele estava como que contemplando aquilo que dizia. Com certeza gostava daquilo imenso. Era um narrador de categoria um catequista espontâneo, nascera mesmo tal. E era precioso!
Demba avançava e abria caminho, Ambona seguia e prosseguia o trabalho, os dois apaixonados por Jesus e pela "sua" Igreja que estava a nascer. Uma longa caminhada percorrida com o padre Marmugi, como que o pai deles, no meio duma crescente hostilidade por parte dos anciãos da tabanca.
Ambona intuíra que, para seguir a Jesus de perto se devia baptizar, mas o padre ainda não lhes falava de Baptismo... e os anos passavam. O padre tinha razão quando lhe dizia: "A tua moça ainda não ouviu nem uma palavra do catecismo: como podes saber se ela estará de acordo contigo e com tuas escolhas?" A sua moça Jinokorut o nome dela, não sabia nada de Jesus e ele não lhe podia falar dEle. A lei felupe absolutamente não consentia que eles dois se encontrassem a sós: sempre devia haver um adulto com eles. E Ambona não queria que Jinokorut também fosse magoada pela hostilidade e pelas represálias que os anciãos já estavam a exercer contra eles desde que saíram da adolescência e se tornaram jovens com que a tabanca queria poder contar.
O padre lhes dizia que deviam continuar no caminho de suas vidas, construir suas casas, casar: a seguir as coisas se tornariam mais fáceis. Uma vez em casa com Jinokorut, ele lhe podia falar livremente de Jesus sem a presença de pessoas incómodas: já estavam casados e tinham o direito de se frequentarem, de ficarem sozinhos em sua casa. Jinokorut tinha a cabeça rija e, no seu entender, levava até tempo demais a entender o que ele lhe dizia. Mas ele repetia, com paciência, como o padre lhe dizia.
Certo dia, voltou de Bafatá um dos rapazes que os padres tinham enviado ao internato da quela missão para se prepararem a ser ajudantes dos padres, monitores e catequistas, o Adriano, filho do chefe da tabanca de Elia. O padre o encarregou de fazer catequese às famílias de Demba e de Ambona e dos demais colegas em suas próprias casas.
Nasceu o primeiro filho e Ambona pediu ao padre para o baptizar, queria colocá-lo nas mãos de Jesus para que nada lhe acontecesse de mal. Jinokorut estava de acordo. E o pequeno António foi baptizado. Ambona era feliz: Jesus entrara em sua casa! A catequese foi intensificada. Nasceu uma menina e foi chamada Juliana. Também foi baptizada, com as crianças de outros amigos. Os anciãos da tabanca se alarmaram. Já era claro que todo o grupo estava a fugir-lhes das mãos. Era necessário dar-lhes uma lição para impedirem que continuassem. Era uma verdadeira perseguição, e ia intensificando-se com o passar do tempo. Já deviam vigiar suas crianças para impedirem que se lhes fizesse algo de mal: sempre havia venenos em circulação, todos sabiam. Os insultos eram matéria de cada dia. As mulheres da tabanca insultaram suas mulheres. Foram compostos cânticos para zombarem deles e eram cantados também nas outras tabancas em ocasião das festas.
Chegou-se por fim a usar violência. Foi-lhes comunicado que não seriam aceites a participar da próxima iniciação, o fanado; o que queria dizer que eram expulsos da tabanca, já não faziam parte dela. Alguns deles foram espancados e ninguém na tabanca protestou. Então foram amarrados e espancados publicamente.
A este ponto o padre recorreu ao representante do governo, que na altura era ainda português. Nada exigiu contra os anciãos, simplesmente proteção para aquelas jovens famílias que talvez poderiam se transferir para outras tabancas onde podiam estar mais seguros, mas que preferiam ficar na sua tabanca todos juntos, talvez um bocado afastados mas no território, porque queriam abrir um caminho. O representante do governo, tal Ferreira, indicou uma porção de terreno que ficara livre entre a pista de aterragem e a missão católica: pertencia ao Estado: o padre podia tomá-la para lá colocar seus cristãos. Não era a solução melhor, mas como provisória podia funcionar. E aquele grupo e jovens chefes de família aturaram mais um ano de trabalho para construir as novas casas. 
Mas a tabanca não dormia. Eis então a nova ameaça, terrível. "Se vocês forem habitar naquelas casas fora da tabanca, naquele lugar que é maldito, suas crianças irão morrer e não nascerão outras!" Ambona já não sabia mais o que fazer, a prova era tremenda! Via Jinokorut aterrorizada, mas ele também não estava nada tranquilo. Rezava muito, apaixonadamente e pedia:"Jesus, não deixes que as minhas crianças morram. Toma-as tu, se quiseres, mas não deixes que morram!". Pediu com insistência o Baptismo e o padre prometeu que dentro de não muito tempo o receberiam. Esperava a chegada dum padre jovem que os ajudaria a levar para frente a sua Igreja nascente pela qual estavam a suportar tantas provações. A este ponto não faltava mais nada: só entrar nas novas casas. Intensificaram o trabalho e antes do tempo da chuva mudaram para as novas habitações. Mas Jinokorut não aceitava mudar para aquele lugar "maldito": tinha medo pelas suas crianças.
Ambona já não encontrava mais razões para a convencer, erra irremovível. Contou ao padre. O qual recorreu a um estratagema, como ele mesmo me contou. Um belo dia encontrou Jinokorut, a chamou e disse-lhe;" Sabes, Jinokorut, uma mulher da tabanca de Eossor deu-me uma mensagem para Ambona. Mas eu não queria entregá-la sem to dizer. Acho que me compreendes!" Não era nada verdade, mas foi suficiente: Jinokorut juntou todos os seus haveres e no mesmo dia já estava em casa com Ambona! Foi naquela altura que eu cheguei a Suzana e comecei a conhecer estas pessoas, protagonistas de uma história maravilhosa, algo que lembra a epopéia dos Actos dos Apóstolos.
Aponto aqui só alguns episódios interessantes que dizem respeito a Ambona e ajudam a compreender o que se passou. Quando fiz a padre Marmugi a proposta de começarmos a compor cânticos para a liturgia em língua Felup, Ambona, a quem o padre o disse, como de costume não mandou dizer o que pensava e sentenciou:" A nossa língua não presta para cantar na Igreja". Só faltava isso, a coisa quase que virava a desafio. Nasceu o primeiro canto, a rapaziada o aprendeu cedo e o cantava com gosto; veio o segundo, depois o terceiro... e Ambona, solenemente, veio dizer que se tinha enganado. Alguns anos depois do falecimento de padre Marmugi, com o irmão Renato resolvemos preparar a liturgia solene da Semana Santa, dando cumprimento a um desejo que cultivámos com padre Marmugi. Era porém necessário enfrentar um grosso trabalho de traduções e... compor cânticos que, além de serem artísticos, deviam também ajudar as pessoas a rezar acompanhando momentos litúrgicos tão importantes. Lembro que, como primeiro canto preparei os "Impropérios" da sexta Feira Santa: "Meu povo, o que é que eu te fiz de mal, no que é que te magoei? Responde-me!". A meu juízo o canto saiu bem, bonito e intenso. Mas devia ser aprovado pelas pessoas a quem devia servir. Então gravei o canto, mais vezes. Quando toquei o sino para a catequese, liguei o gravador e fui-me embora. Depois de um certo tempo aparece Ambona e diz: "Padre Zé, vem ligar outra vez o gravador: rezei tão bem com aquele canto!" Acertara em cheio a mensagem!
Era um entusiasta, braço direito do padre Marmugi para a catequese nas demais aldeias que se iam apresentando para pedir o "caminho de Deus". Tentou frequentar a escola, mas o ensino estava a um nível tão baixo que não se aprendia nada; aliás a própria frequência não era fácil, atendendo à quantidade de trabalhos que devia fazer. Contudo conseguia fixar a Palavra de Deus com uma facilidade surpreendente e a voltava a propor com fidelidade.
Não há comunidade em que não tenha ido anunciar o Evangelho, a começar pela sua própria casa. Um dia perguntei-lhe se podia participar da oração da noite em sua casa e escolhi a noite dum domingo. Fiquei impressionado por como sabia envolver os filhos na oração (a mais pequena na altura ainda não tinha cinco anos) e por como reconstruiram as leituras da Missa, entre as quais o evangelho fez a parte do leão. E quando se tratou de propor as intenções para a oração do povo, também a mais pequena foi solicitada e, com a ajuda da mãe e do pai, conseguiu safar-se em beleza. Com o volver dos anos, os dois filhos mais velhos, António e Juliana, os que no momento da provação foram oferecidos ao Senhor, Jesus tomou-os a sério: António foi ordenado padre em dois mil, o segundo padre da nossa missão e Juliana se tornou freira, a primeira da nossa missão. Quando se diz : ter fé!
Ambona e Jinokorut continuaram no seu compromisso de servir sua comunidade com o testemunho e com mais ainda. Jinokorut também cimentou-se com o serviço de catequista apesar de ela dar conselhos, mais de que explicar verdades da fé: mas eram conselhos preciosos, brotados duma fé vivida. E dum testemunho.
Juntos ofereciam seu testemunho de casal e de pais cristãos nos demais cursos de formação que se sucediam a Suzana a serviço de toda a diocese. Lembro aquela vez que um grupo de catecúmenos vindos de fora tinha dificuldade em aceitar o matrimónio como indissolúvel, por toda a vida, e fazia um monte de objeções. A certo ponto viro-me para Ambona e Jinokorut e digo: "Vocês queriam responder?". Tinha certeza que sim, porque via-se mesmo que Ambona tinha uma vontade louca de intervir. Arranca na quarta mudança e propõe suas razões. A certo ponto Jinokorut intervêm e diz:" Agora me deixas falar a mim, e continua: Eu dou graças a Jesus porque meu marido me casou na Igreja. Ele sabe que eu nunca o abandonarei, nem que a doença tome conta dele e esta não é uma grande novidade porque muitas minhas colegas não cristãs fazem o mesmo. Mas eu também sei que ele me ama verdadeiramente e nunca me abandonará, nem que por idade o por doença eu vire a farrapo; vira-se para o marido: é verdade, Ambona?"
Nunca esquecerei aquela cena: Ambona que olha para Jinokorut anuindo com a cabeça e o sorriso sereno de Jinokorut, que valia mil catequeses.

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