terça-feira, 24 de janeiro de 2017

Os jovens da Guiné-Bissau face ao presente e ao futuro



A caminho do Sínodo diocesano 
Pelo p. José Fumagalli


Contributo para o Sínodo a partir da situação Juvenil dos Felupes de Suzana.

Os jovens de hoje em dia não choveram do céu, mas são fruto de uma cultura, de uma sociedade, de umas situação movediça que vive o desaparecer de umas certezas e o não aparecimento nítido das que as deveriam integrar ou substituir

O jovem na cultura felup.
A cultura neste nosso meio identifica-se com a "tradição" no sentido mais "imobilista" da palavra: "eu entrego-te o que recebi, possivelmente sem ter mudado nada. Tu agora conformas tua vida com o que te entreguei e irás entregar aos teus sucessores o mesmo que recebeste." (De passagem podemos perguntar: E as mudanças? porque é inegável que tem havido mudanças na maneira de viver, de actuar etc...
Das mudanças assume-se o que convém, principalmente aos próprios anciãos.
É o esquema mental antigo que prevalece o qual "metaboliza" qualquer novidade que venha a aparecer: os resultados desta operação é que podem ser positivos ou negativos conforme ajudam ou travam o crescimento verdadeiro da comunidade humana e de seus componentes.)

Tradicionalmente no meio Felup o jovem não conta nada, só é apreciado pela prestânça física:
- o corpo atlético,
- a habilidade na luta desportiva assim como em tocar instrumentos musicais.
- um aspecto interessante da força é a sua aplicação à lavoura: o jovem lavrador e lutador é o máximo.

O jovem não tem direito a pensar e a programar autonomamente: pode ser mandado levar um recado a uma tabanca longínqua improvisamente, sem ser avisado nem perguntado pelos seus programas; pega e vai sem discutir: um bocado como um soldado, apesar de não ser admitido à guerra: ainda não tem filho, se morrer, morreria todo.

NB. - Um jovem que arranja filho antes do casamento é automaticamente excluído da luta
desportiva: tem responsabilidade, se se aleijar seria uma desgraça.

- E' tão importante sua habilidade na luta que, se não houver substituto em condição de
garantir uma vitória contra outras tabancas, os grandes podem impor-lhe de adiar o casamento até o sucessor aparecer!
Desde que proclamou a noiva através do seu padrinho (aruncen au ou ariten au), entra com sua classe de idade no itinerário de preparação ao casamento, itinerário que leva seis anos, no sétimo constrói (tèp =criol panga) a casa. E casa, publicamente.

Nesta altura, tradicionalmente, tem 25 anos. Pertence à classe de idade dos jovens desde os 18 anos, mas ainda não é perguntado acerca do andamento da tabanca nem é chamado para os trabalhos comunitários, apanágio dos casados.
É verdade que desde o terceiro ano do itinerário de preparação ao casamento (o dos Bapend abu, 20-21 anos) é chamado à responsabilidade, já não é criança e deve prestar contas do seu comportamento; desde o quarto ano (hungom ahu, 21-22 anos) já é lutador grande e representa a sua tabanca também através do seu comportamento: se se comportar mal, não o repreendem só a ele, mas sim dizem "os de... (nome da tabanca) se comportam daquela forma".
Já tem uma certa responsabilidade económica: desde que declarou a bajuda lhe dão uma porção de terreno a lavrar o Kacàrat aku, que cultivará com a bajuda (e sua mãe): o arroz é arrecadado; em caso de carestia, pode funcionar como amortecedor social, mas normalmente fica até ao casamento: a nova família deve entrar numa casa cheia de arroz, e o primeiro filho deve nascer com um futuro seguro: casa, família, arroz!

Porém ainda não tem responsabilidade social, nem que tenha já feito o fanado. A verdadeira iniciação, para o Felupe, não é o fanado, que é de recentíssima importação, (dos muçulmanos, através do Fogny e da tabanca de Kahen (Jirak)), mas sim é este itinerário de iniciação ao casamento.

Quando casar, logo passa a pertencer à classe dos Ejamor ai, é Ajamor au. O nome vem do radical JAM (...criol. OBI), na sua forma recíproca jam+or= jamor e quer dizer "entender-se, concordar". É membro do povo a todos os efeitos, também com a responsabilidade, e o dever de lhe assegurar o futuro através da geração de filhos dentro das regras e tradições.

A primeira pessoa com que se devem entender é a com que casaram. (ver o conteúdo profundo no meu contributo ao sínodo "Cultura e inculturação" págg. 22-23). Com os jovens não se discute, mandam-se. Com o casado se pode discutir, faz parte comunidade da tabanca, cuja unidade de medida não é a pessoa, mas a casa, a família (a paróquia não está muito longe: grego: paroikia, as casas vizinhas que constituem a paróquia).

Neste esquema tradicional a juventude era passiva, vivia à margem, só era introduzida no povo activo não só no plano físico, mas sim com todo seu ser, através do casamento (repito o fanado está ainda fora de uma colocação razoável, ainda é elemento “disturbador", só aparece de trinta em trinta anos e abrange crianças e respectivos pais...; mas este é outro assunto).

Apesar de tudo, pelo menos a partir dos 25 anos, entrava no círculo a seiva nova, o sangue novo dos recém-casados, na flor da idade e já com uma certa responsabilidade: autorizados a dizer seu parecer.

Com a introdução da escola, e da escola superior, a idade do casamento deslizou sem que houvesse uma reflexão a acompanhar este fenómeno.

A SITUAÇÃO ACTUAL ressente muitíssimo da mudança da sociedade, não acompanhada por uma oportuna reflexão a nível do mundo dos adultos e dos educadores., compreendendo a escola (e um bocado também nós da Igreja).

As escolhas morais do jovem, desde menino, foram ditadas por uma moral "exterior", uma lei não escrita, mas consignada (tradição) e aplicada pelos membros adultos da comunidade, a que o menino, o adolescente, o jovem devia estar submisso. A tragédia a que assistimos é que estes rapazinhos e moças cedo emancipam-se desta submissão,
quer por causa da escola como aprendizagem "desmitizante", quer porque cedo demais se afastam de suas tabancas e vão à cidadã e para continuar os estudos e a "rede protetora" desaparece, sem que tenha havido um trabalho de interiorização, de motivação, afinal de formação duma consciência moral. As iniciativas dos jovens só estavam no âmbito da brincadeira, sem consequências (e sem utilidade) para o mundo real, o dos adultos, da tabanca.
Para o que revestia duma certa importância, o jovem esperava a ordem vinda dum adulto: era duma certa forma, dispensado do esforço de pensar, imaginar, excogitar algo para o futuro. Pior ainda se se tratava de algo de novo, de diferente, de não conforme ao que sempre se tinha feito. As sanções eram terríveis e o posso documentar com lembranças pessoais.

Agora o jovem se encontra num mundo que mudou, os velhos não lhe podem dar os habituais suportes, porque eles próprios se encontram desnorteados pelas inúmeras e inesperadas novidades. Houve tentativas de segurar o leme, à custa de grandes sacrifícios (carregados sobre os jovens, normalmente) mas tudo acabou por fracassar.

Caíram as leis antigas e não foram suplantadas por perspectivas novas (ausência culpada também da igreja, nossa?).

O sistema educativo da escola na maioria dos casos não educa (e-ducere) mas sim assimila: o aluno é passivo, um manequim para revestir, um balde para encher, mas com quê, se o próprio professor em muitos casos está mesmo vazio (ou pior, cheio de vinho desde manhã cedo)? E o aluno depende totalmente dele: falta de textos, falta de livros: come-se o que o professor cozinhou e mais nada; não há trabalho de pesquisa e reflexão, ma só de "redacção": resumir e relatar o que outro pensou: dispensados de ter um pensamento próprio!. Era o sistema colonial, o do partido único, que passou do fascista ao marxista, mas sem utilidade nenhuma para o aluno, a nível educativo. Nem que, apesar da escola, um jovem consiga amadurecer um espírito de iniciativa, o que tem na frente? Quais as iniciativas realizáveis e rentáveis a nível de vida individual, familiar e social? Muitos parecem sonhar com uma única iniciativa. A CANOA, PARA PASSAR O MAR....

Voltando ao ambiente felup, o da minha missão, a tragédia apresenta-se ainda mais aguda: a idade do casamento deslizou e quem casa, geralmente resolve fazê-lo em volta dos 37/38 anos ou até mais tarde. O que quer dizer que a tabanca priva-se da contribuição, em pensamentos, ideias, perspectivas.... e forças NOVAS até que seja passada a idade com mais força para produzir algo de novo: quando o homem já entrou numa fase "descendente" da vida.... Um suicídio cultural.

Do ponto de vista da pastoral.
Em passado a grande maioria das pessoas que vinham pedir o caminho cristão era constituída por recém-casados, com um ou dois filhos; os tais EJAMOR AI que começavam a se dar conta de que deviam construir a vida sua e de seu povo: já não lhes bastava o que vinha da tradição e vinham pedir lumes à Palavra de Deus. A maioria das comunidades nasceu desta forma: por isso é que aguentaram e tiveram "pé" para fazer uma caminhada. Esta camada de pessoas agora desapareceu socialmente... e o catecumenato ficou sem ninguém! Simplesmente agora estamos a tornar mais contínuo e propositivo o caminho de recuperação dos jo-pais, pelo menos os que ainda são recuperáveis, para ver se se podem investir no envolvimento dos colegas.
Ma isto é só uma gota no mar. O que deve mudar é enorme, a nível social, político, educativo, económico etc, Mas é urgente que quem pode fazer algo, nem que seja mínimo, o faça sem demandar a iniciativa a outras instâncias.........

CONCRETAMENTE
O que é que a missão de Suzana está fazendo por sua parte?
- A primeira vertente é a da evangelização.
Procuramos atacar a realidade começando muito cedo, começando pelas famílias:
- criar um clima de confiança e sinceridade entre filhos e pais;
- dar exemplo de laboriosidade e seriedade face à vida de cada dia;
- comprometer-se no diálogo pais-educadores a nível de escola e de catequese;
- cuidar da formação e da catequese dos filhos;
- colaborar entre as famílias para garantir seguimento na educação.

Procurámos articular a administração dos sacramentos aos filhos dos cristãos num verdadeiro caminho de iniciação, com participação das famílias e da comunidade, com retiros apropriados quer para as crianças da primeira Confissão (pedra miliar na formação da consciência moral) quer para os candidatos aos sacramentos sucessivos, com encontros pessoais também com o padre. (ver contributo citado pp. 30-34).
Dada a ausencia quase total dos jovens (os que vão à cidade, nem que fracassem, dificilmente regressam) procuramos encontros formativos a nível pesssoal humano como religioso, com projecção para a vida familiar, juntando os das várias comunidades, nem que as counicações nem sempre sejam fáceis. Muito insistimos napreparação para o Crisma, administrado a jovens de 18 anos e a moças de 17.

Segunda vertente: promoção humana
Tentámos apoiar a escola do Estado para que funcionasse menos mal, sobretudo quando os professores eram mal ou nada pagos. O obstáculo principal: os próprios professores. É criminal garantir-lhes o fim do mês e não exigir nada em contrapartida! Já não se vai a frente neste projecto: o Estado paga os professores.
Passamos a integrar os últimos anos que os alunos, nem que seja em idade jovem, passam por cá, antes de irem à cidade. Ladeámos a escola com propostas de pequenos trabalhos artesanais rentáveis, ensinados pelas próprias mães, cursos de máquina de costura, cursos de línguas, cursos de aritmética-administração, hortas escolares com a intenção de se aplicarem depois em pequenas iniciativas hortícolas rentáveis, sem serem todos hipnotizados pelo LICEU, que enche a boca (e as barrigas das meninas! Fizemos umas estatísticas entre as que foram a Bissau ainda novas durante uns anos: 96% já tinha arranjado barriga depois de menos de dois anos de estadia em Bissau, com
interrupção da escola. Calculando que os alunos que vêm do interior são mandados repetir a última classe, mais do que metade não conseguiu acabar a classe sucessiva!!!).
A finalidade é descobrir inclinações e aptidões para ver se se aplicam a aprender também trabalhos de que a sociedade precisa, até com cursos apropriados (CIFAP etc.)
Resposta: além das hortas, em que trabalham os mais pequenos, os mais crescidos optaram para as línguas: será que preparam a viagem para as Canárias ou para ... Lampedusa?

Nem por isso: passado o efeito surpresa, os docentes ficaram sem alunos e presentemente (2017) está tudo parado. Aproveitando as máquina para pilar arroz angariadas em anos passados e não bem aproveitadas por falta de jovens que se apliquem a isso, decidimos oferecer toda a estrutura a um "pool" de jovens, com trator, máquinas transportadas, a viajarem pelas tabancas a pilar arroz, administração própria, em autonomia. Fora de Suzana alguém timidamente diz-se disposto a aceitar. Resposta dos jovens de Suzana:"Ou pe. Zé diz quanto nos paga no fim do mês ou nós não aceitamos". Não querem iniciativa, não querem arriscar-se: sonham com o relacionamento "patrão-empregado" o qual deve ter o fim do mês assegurado: as preocupações são com o patrão". Inaceitável, claro! A Missão não é uma agência de colocamento de trabalhadores.

Terceira vertente: técnica.
Enfim, perspectivámos o surgir de uma quase ONG e o arrancar de um projecto teoricamente bem articulado. Com a realização de comportas em quatro tabancas conseguimos até hoje facultar o resgate de cerca de 500 hectares de bolanhas. Quem lavra são só velhotes, e então: envolvemos jovens na iniciativa e alguém (fora de Suzana) respondeu. Para se conseguir lavrar mais extensão estamos trazendo motocultivadores Goldoni: por enquanto 4. Serão confiados a uma equipa, os nossos mais outros, que cuidarão que trabalhem nas bolanhas recuperadas (com talhões maiores). Com a mecanização da agricultura tencionamos aliciar jovens que se resolvam a deixar a guarda noturna aos contentores em Bissau para virem desenvolver sua terra, através da aumentada rizicultura e das hortas ainda mais potenciadas e estendidas, claro: com iniciativas geridas por eles, cujo rendimento vai diretamente a eles. O projecto teria três anos de duração, dos quais o primeiro ano é crucial. Se tudo correr bem deveríamos ter um notável aumento de produção. Nos anos sucessivos outros hectares resgatados e lavoura com trator em tempo seco, mais motocultivadores, duas debulhadeiras e por fim as máquinas descascadoras.
Deveria surgir uma iniciativa agrícola por cada tabanca, possivelmente "federadas" se assim escolherem. No entanto ladeamos com iniciativas de alfabetização e pequenos cursos de administração e de melhoramento de hortas e campos.

A Missão envolveu-se com o capital de conhecimentos e de confiança acumulado ao longo dos anos, como também com a tecnologia que possui para garantir credibilidade ao projecto diante dos financiadores como também as primeiras realizações no terreno.
O futuro será com eles em auto-gestão, até ao surgir de verdadeiras empresas agrícolas de sua propriedade e gestão.

Apareceram uns elementos jovens, de várias comunidades, que para começar se juntaram aos nossos da oficina e já conseguem realizar uns trabalhos e umas estruturas de forma autónoma. Confiou-se que o exemplo podia ser seguido por outros em breve. Como se disse este primeiro ano era crucial, por isso nos investimos duma forma um bocado substancial. A seguir os padres não deveriam ter mais óneres e a missão até devia poder ter algum benefício.

Quod erat in votis, diziam os Romanos: era o que a gente sonhava! A realidade actual é bem diferente! Quem mais dava esperanças, tendo-se aplicado fortemente e com habilidade, desapareceu... sem que aparecesse o dinheiro gasto para ele poder trabalhar. Outros pararam sem nada dizer e não se consegue que peguem outra vez. As máquinas descascadoras estão paradas a espera que os que conseguimos preparar continuem e... não passem a aumentar o número dos tais "professores parasitas" da escola, deixando as máquinas em mãos de gente não preparada que em poucos dias dão cabo delas.
E os motocultivadores? Sempre a mesma cantiga: a Missão deve assumir, gerir em próprio e pagar: pagá-los para que aprendam, pagá-los no fim do mês quer trabalhem quer não, sendo o segundo caso o melhor, que lhes deixa o tempo para sentar a sorver warga nas "bancadas", a última (?) criatura do diabo: os padres (o padre Zé) é que devem assumir tudo: eles "não querem problemas nem riscos, só o dinheiro no fim do mês!
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- Existem iniciativas que tiveram maior sucesso do que as que acabámos de descrever?
Podem descrevê-las?
- Como conseguir que jovens saiam da cultura de morte da Warga e da "bancada"? Têm experiências a este respeito?
- O que propõem para estimular o desejo de se empenharem na aventura de melhorar a vida sua e do próprio País?
- Quais as dificuldades encontradas em ter respostas positivas pelos jovens? Como conseguiram ultrapassá-las?

Jovens,
- O que é que vocês querem dizer a este respeito?
- O que é que querem da Igreja, da Missão, dos padres?
- O que é que oferecem como colaboração, que sempre reverte à sua vantagem?
- Têm outras iniciativas a propor em que garantem que se vão empenhar?


Suzana, 09.01.2017

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