segunda-feira, 26 de setembro de 2016

Anjiroken a profetisa de Ejin



Ehlalab é uma pequena tabanca felupe não longe da fronteira com o Senegal. E´praticamente uma ilha, rodeada pela água do mar que entra pela terra adentro em forma de rios e riachos.
Na noite de Páscoa de 1990 Ehlalab renasceu pela água e pelo Espírito Santo pela primeira vez desde que o sol lá do alto ilumina o desenrolar-se da vida neste mundo: seis famílias pululantes de crianças.
Ma há um pormenor que logo se nota: os catequistas que ajudaram a comunidade a se preparar assim como os padrinhos que acompanharam todos eles da mais vizinha comunidade, que é  Ejin, onde já existe desde dez anos uma comunidade cristã sólida que abriu caminho às outras comunidades da área. Nada de estranho? Nada. A não ser que as duas tabancas, apesar de pertencerem à mesma família Jóla  Felup,  são inimigas desde sempre, separadas por uma hostilidade secular, pontuada por uma longa série de conflitos sangrentos. As coisas não mudaram muito nem durante a guerra de independência, mas a partir de 1973 para Ejin e de 1977 para Ehlalab os primeiros grupos de simpatizantes pediram a catequese e o padre começou a aparecer  regularmente, viajando no rio; as mulheres começaram a frequentar as irmãs. E os catequistas? Foi difícil, mas aconteceu algo de inesperado. Catequistas havia, com vontade de ajudar, mas aquela inimizade atávica representava um problema e não dos mais pequenos.
Mas não para o António, o filho de Kutujenuió de Ejin: que assumiu como seu encargo particular o de acompanhar a comunidade nascente da tabanca "inimiga".
Quando uns catecúmenos de Jihunk, tabanca aliada de Ejin, o souberam, protestaram vivamente. Foram dizendo que isso non podia ser, que não se podiam ajudar os inimigos daquela forma, que António devia ser mandado parar.
Antes de eu tomar conhecimento da coisa, António  precipita-se a Jihunk e pergunta acerca das razões de tais murmurações. Eles não se calaram: "Mas como, tu vais levar a mensagem da salvação aos de Ehlalab que são nossos inimigos? E quando arrebentar mais uma guerra o que vai acontecer? Sabes dizer o que farias na ocasião?"
António não esperava mais. Falou como um profeta inspirado pelo Espírito Santo. Quando me contou o que lhes disse ainda vibrava com intensidade. Em resumo eis o que disse: "Vós sabeis que que entre nós de Ejin e os de Katón nunca nos demos bem. Ninguém sabe contar as vezes que estivemos em guerra. Entre os nossos pais ainda estão de vida os que se afrontaram nas últimas de tais guerras e nos lembram os nomes dos que foram mortos. Bom, o António Sipenjuló de Katon não veio por acaso muitas vezes nos lembrar e explicar a palavra de Deus a nós de Ejin? Sempre ficou hospedado em minha casa e nos tratamos como irmãos, Ele me disse porque fazia isso. Disse-me que assim é que Jesus se portou connosco: nós estávamos em pecado, inimigos de Deus, mas Ele veio no meio de nós trazer-nos o perdão e a paz; acabou com a inimizade. Agora, se o António de Katon veio a Ejin nos dizer aquilo, não devia eu também ir a Ehlalab? No caminho de Jesus não há mais inimigos, temos o mesmo sangue, o de Jesus, somos irmãos, não há mais "tapadas" que nos separem, acabou!"  Como eu saboreava suas palavras enquanto me contava isso! Cheiravam mesmo a Novo Testamento! E no meu coração agradecia a Deus que diante dos meus olhos ré-escrevia o livro dos Atos dos Apóstolos,,,,
Com o passar dos anos também os de Jihunk aprenderam umas lições e deram mais passos no caminho... até aceitarem ser ajudados por um catequista... de Ehlalab!

Naquele dia de Páscoa de 1990 , na homilia do Missa,  em presença dos neófitos de Ehalab, eu estava comentando estes factos, quando Anjiroken a idosa viúva de Kutujenuió, levanta da sua cadeira, avança com seu passo incerto apoiada  ao pau que sempre leva consigo, chega ao altar vem ter comigo, chama-me "Apinda", um dos meus nomes felupe, cumprimenta, "kassuumai", pega na minha mão e me diz:"Agora tu calas que vou falar eu": "Fala, digo, tu és a nossa mãe".
Vira-se para a assembleia e começa a falar, agitando ritmicamente o corpo como numa dança:
"Eu sou velha, velha mesmo e vi coisas que nunca mais vós podereis ver! Eu sei o que significa não  sair nunca da própria tabanca  e não pisar com o pé o solo de outra por medo que te façam mal.
Até eu ter crescido nunca vi a tabanca de Ehlalab, nem sabia como era feita. Nunca ultrapassávamos Jihunk ali ao pé, por medo que alguém, por ser inimigo, nos fizesse mal.
Mas agora estou contente, contente mesmo e posso morrer satisfeita, porque o Senhor me fez ver coisas que nunca  esperava ver. A minha mãe nunca me levou a Ehlalab, quando era criança, e agora vós estais cá com vossos filhos pequeninos, brincam com os nossos e ninguém tem medo de nada: é o Senhor que nos fez isto. Ele nos fez irmãos, somos todos irmãos, os nossos filhos são vossos filhos e os vossos  filhos são nossos filhos. Jesus, Jesus nos fez isto. Já pode vir buscar-me para eu ir embora com Ele.  Jä não desejo outra coisa: posso morrer, que morro contente!" Pega outra vez a minha mão e diz:" Não estragueis o caminho que este padre nos trouxe: é o caminho de Deus e sabe demais!"
O povo em volta, e nem só ele, tem olhos lúcidos e molhados, a memória sobrecarregada de medos, lembra vinganças em séries intermináveis, sofrimentos antigos e recentes... e de repente, depois das palavras de Anjiroken, parece que isso tudo se dissolveu: surgiu uma esperança nova e uma certeza a cantar nos corações: Ele nos fez irmãos! Acabou o medo!
Anjiroken vira-se para mim e diz:"Agora podes continuar!"
Continuar? Deus revelou os segredos do Reino aos pequenos e eu vou dizer palavras minhas? Só tive a força e a alegria de dizer Ámen! ao qual seguiu outro Ámen! espontâneo, sentido, da Assembleia toda.

 por Pe. Zé Fumagalli
Publicado em Mondo e Missione, Março 1994, com adaptações.

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