terça-feira, 20 de setembro de 2016

Figuras significativas de cristãos guineenses: Madalena



A caminho do Sínodo diocesano

Aparece, saindo da escuridão que ainda por pouco tudo envolve e vejo-a entrar pela capela adentro. Com seu passo calmo dirige-se ao local de costume e se ajoelha, em oração. É um dos dias em que, ao alvorecer celebro a santa Missa em Suzana, na missão central e é normal que, chamada pela voz do pequeno sino, Madalena apareça. Ainda mais depois que o Demba, o marido dela, faleceu. E lá vão quinze anos. Ela precisa de muita ajuda por parte do Senhor para continuar a sua caminhada e crescer os filhos no caminho de Jesus.
Todo o mundo ficara surpreendido pela força com que Madalena defendeu a sua decisão de continuar a viver na casa que o seu malogrado marido acabava de reconstruir, bonita e sólida, pouco antes de adoecer. Segundo a tradição da sua etnia, a Jola Felupe, a casa deveria ser abandonada e os materiais resgatados pelos irmãos do marido os quais repartiriam entre eles também os filhos enquanto ela teria sido tomada por algum deles como segunda mulher. É a lei do "Levirato", com seus aspetos positivos no sentido de garantir que a vida continue, mas que se abatia como uma machadada sobre as escolhas que Madalena fizera junto com o marido. Não queria voltar para trás. Nunca aceitaria tal perspetiva!

Demba era um rapaz forte, ativo, dinâmico, trabalhador, com iniciativa. Madalena, ainda menina, regozijara-se ao saber que Demba a escolhera como esposa. Ainda não se dava conta do que significaria para ela o "caminho" que ele tomara: ela tê-lo-ia seguido com ele, não só pela passividade e pela submissão que desde sempre são apanágio da mulher neste ambiente, mas, no seu caso, também por outras razões: simplesmente confiava cegamente naquele jovem e aceitara de se tornar sua esposa. Via-o frequentar a missão católica, o padre Marmugi, juntamente com seus companheiros e ouvia as críticas, às vezes duras, que a gente da tabanca fazia acerca de seu comportamento e de suas escolhas. Naqueles poucos encontros que a tradição lhes permitia, ele falava do que vinha aprendendo do padre missionário; também lhe disse que um dia, quando ela também tiver tomado o "caminho" da missão, eles dois se tornariam "cristãos". Madalena não compreendia muitas destas coisas que o Demba dizia, mas havia algo que ela segurara e era que, uma vez entrados naquele caminho, um homem casava uma mulher só e nunca mais a mandaria embora: era sua mulher por toda a vida!

Isto era na verdade uma coisa nova que também lhe incutia medo, mas intuía que, para ela, mulher, a vida se apresentava diferente da das outras mulheres da sua tabanca. Nela muitas eram as mulheres que, depois de terem vivido anos com um homem e de lhe ter dado filhos, eram postas fora da casa para dar lugar a outra mulher, talvez mais nova, mas cujo futuro continuava incerto como o delas. Esperavam que alguém as tomasse como esposas, naturalmente depois de despedida a mulher "em serviço"; no entanto labutavam dia a dia para crescer os filhos que o homem a certo ponto levaria.

Demba contava-lhe o que o padre lhes dizia, a saber que se deviam amar a sério com suas esposas, querendo um o bem do outro, que se deviam ajudar, que tudo entre eles devia ser em comum, que não se deviam esconder nada, se deviam respeitar, ele, homem, devia ter respeito para com sua mulher. Madalena sabia que Demba falava a sério, não brincava não só, mas no momento certo não deixaria de se comportar mesmo como lhe ia dizendo. Sentia que o relacionamento com seu homem seria diferente do das outras suas companheiras com seus maridos, mas não conseguia ter uma ideia clara de como seria: tudo era tão novo e estranho!

Casaram e foi uma festa! A casa era grande, bonita, mesmo cheia do arroz que cultivaram juntos nos últimos dois anos de preparação ao casamento. Era impressionante ver como Demba lavrava, o ritmo com que revoltava a terra da bolanha: ela própria às vezes não conseguia segurar o passo atrás dele repicando arroz... Mas agora lá estava ele enchendo a casa e o futuro aparecia encorajador.
                                                          
Começaram os primeiros passos da vida em conjunto. Demba parecia mesmo incansável: nunca parava, tinha sempre algum trabalho entre as mãos também no tempo seco, quando trabalhava na Missão. Parecia-lhe porém que, às vezes, fosse um bocado exigente demais, por exemplo que tivesse a casa sempre bem limpa e asseada, os indumentos sempre em ordem, que aprendesse a consertar a roupa que vestiam. Certo dia até saiu com a proposta de os dois aprenderem a ler e a escrever: ela também, uma mulher, ainda mais uma mulher já casada! E pensar que nem ele conseguia, ele que era homem e punha naquilo um esforço notável!!...

De qualquer forma esforçava-se de se portar como ele queria, ainda mais porque ele, à maneira dele, era muito atencioso para com ela. Já esperava o primeiro filho e Demba estava cheio de atenções para com ela: não queria que fizesse trabalhos pesados: até chegara ao ponto de carregar-se ele próprio a lenha no mato e de a trazer para casa em cima da cabeça! Todo o mundo fazia troça dele, mas ele não se importava e dizia: "Minha mulher está fazendo o nosso primeiro filho e eu ajudo-a. Assim disse o padre".

Nasceu Francisca, bonita como uma flor. As "mulheres grandes" da tabanca e as suas parentes queriam fazer todas as cerimónias oportunas para encomendar a criança à proteção dos espíritos e dos antepassados; ela também sentir-se-ia mais à vontade, mas Demba não estava de acordo. Dizia ele que deviam rezar a Deus como o Padre lhes ensinava, que não precisava fazer aquilo tudo. Mas as mulheres grandes diziam que a criança iria morrer se não fizessem tudo quanto a tradição mandava.
Passou bastante tempo nesta situação. Madalena tentava ganhar tempo e, mesmo na incertidão acerca do que podia acontecer à criança, procurava dar crédito ao marido, ainda mais porque o próprio padre se interessava ao seu caso e, quando era preciso, dava os remédios de que a Francisca precisava.

E veio o segundo filho, um menino, que Demba quis chamar de João Vintetrês. Madalena não entendia muito daquilo, mas sabia que era o nome de alguém muito importante, dum homem que era próximo de Deus e parecia-lhe que nada podia alterar a felicidade que entrara em sua casa.
Mas não era assim.
Francisca ainda queria leite e Madalena a amamentava. Mas João também mamava e nunca estava satisfeito: o leite não bastava para os dois. Demba dizia que Francisca devia comer papa de arroz, mas o que fazer se a criança recusava?
As duas crianças começaram a dar sinais de desnutrição; Demba insistia, até levantava a voz. Ele foi consultar o padre que lhe explicou o que deviam fazer, até lhe deu umas papas para a Francisca comer. Mas eram coisas dos brancos!...
Madalena começou a ter medo, medo de que o que as mulheres grandes diziam acontecesse na realidade: não fazes as cerimónias aos espíritos? Teus filhos vão morrer nem poderás ter outros!" Não sabia mais o que fazer, o medo a paralisava.
Um ataque de paludismo deu cabo de João Vintetrês, já debilitado. Alguns meses depois foi a vez de Francisca... e a casa ficou vazia.

Era a treva mais negra, não se via saída nenhuma! Demba às vezes era mudo, não falava, às vezes levantava com ira e a tratava mal, com dureza. Forte surgiu nela a tentação de sair daquela casa, de ir embora, abandonar o Demba. Não conseguiria viver mais com aquele homem: dera-lhe dois filhos e não soubera criá-los! Ou não era porque ele não quis que fizessem as cerimónias de que falavam as mulheres grandes?
Demba não aguentou mais. Apesar das recomendações do padre bateu nela e bateu a valer, bateu até que ficou cansado de a bater. E gritava, rogava-lhe até pragas.
Madalena não reagiu: ficou calma a receber aquelas pancadas todas até que Demba parou. Sentia-se profundamente humilhada. Estava preocupada também para o filho, o terceiro, que tinha na barriga e o Demba ainda não sabia; mas enfim dizia consigo própria que ela merecia mesmo aquilo tudo, que talvez as duas crianças estariam ainda de vida se ela o tivesse escutado, se não tivesse deixado o medo apoderar-se dela...
Um pormenor porém não lhe tinha fugido: mesmo enquanto furiosamente batia nela, da boca do marido nunca saíra expressão alguma que quisesse dizer: "Vai-te embora, sai da minha casa!". O seu marido ainda a queria com ele, a seu lado. Um outro teria corrido logo com ela, sem pensar duas vezes. Demba não! Devia mesmo tentar escutá-lo mais. Soube que o padre tinha dado uma descompostura ao Demba, repreendera-o duramente diante de seus companheiros por ter batido na mulher, ainda mais porque mesmo na altura soubera, pelas mulheres dos colegas de Demba, que ela estava grávida e podia haver consequências para a criança.
Demba agora não sabia mais como alcançar que Madalena o perdoasse, receava que ela quisesse ir embora, mesmo naquela altura, quando havia uma decisão importante a tomar. De que se tratava?
Atendendo ao facto que os anciãos da tabanca intensificaram as represálias contra o grupo dos que frequentavam missão, chegando ao ponto de pendurarem uns para os baterem com paus, Demba e colegas planejavam sair da tabanca e reconstruir suas casas perto da própria missão católica. O Padre conseguiu o terreno, as casas foram edificadas e só faltava passar a habitá-las. As mulheres duns colegas do Demba tinham dificuldades, estavam com medo. Os Anciãos, depois de executados os rituais apropriados, tinham declarado solenemente que, se fossem habitar naquelas casas, os filhos morreriam todos e nenhum outro poderia nascer. Demba era preocupado: o que faria Madalena? Já perdera duas crianças…

Ela tinha-os perdido na tabanca, os seus dois filhos e começava a se dar conta do facto que talvez sim, era mesmo ela a culpada pela sua morte, mais do que os espíritos. A criança que ela tinha agora na sua barriga nasceria na nova casa e ela também, uma vez morando perto da missão, teria começado a ir escutar o padre e a ouvir seus conselhos juntamente com o marido: teriam começado uma vida nova. Disse isto a Demba... E foi uma festa!
Assim nasceu Carminda, depois Avelina e a seguir... Também chegaram as irmãs na Missão Católica. Madalena foi entre as primeiras pessoas que foram ter com elas. Todos os dias levava à missão as duas crianças e queria que as irmãs as observassem para lhe dizer o que devia fazer. Era uma cena comovedora vê-la aparecer todos os dias, mesmo quando voltava cansada pelo trabalho da bolanha.
Vieram depois outras crianças, regularmente e a casa ficou mesmo cheia. No entanto nas aldeias em redor nasciam outras pequenas comunidades e Madalena se encarregava de encorajar as mulheres para que seguissem seus maridos neste novo caminho. Umas delas foram hospedadas em sua casa quando faltava pouco ao parto, até que ela própria quis frequentar um pequeno curso para matronas organizado pela irmã enfermeira. Mas não lhe bastava. Juntamente com o marido quis frequentar também um curso para se tornar catequista ou pelo menos ajudante do catequista.

Mas não acabou o sofrimento, de maneira particular depois da morte do marido. Conseguiu, com a ajuda da comunidade, que a casa ficasse em pé e desta forma abriu um caminho novo: o da viúva cristã. Umas filhas fizeram família fora do sacramento do matrimónio e isto foi uma dor para ela.
Só ficaram os últimos filhos, o trabalho é sempre muito e as bolanhas foram retomadas pelos irmãos do marido, menos uma: a que Demba resgatou dum terreno alagadiço transformando-o numa nova porção de bolanha: segundo o direito consuetudinário felupe, aquilo pertence só a quem o fez e a seus filhos. Não é suficiente, mas a comunidade cristã veio ao socorro com outras porções de terreno.
Uma coisa está contudo fora de qualquer dúvida: Madalena não vai voltar atrás e desta forma se tornou um ponto de referência para outras mulheres mais jovens.
Verdade é que ela nunca conseguiu aprender a ler e a escrever, mas encoraja as mais jovens para que o façam, e tem resultados. De qualquer forma lá fica como testemunho o caminho feito juntamente com o marido.

Lembro-me dum seu testemunho num curso de catequistas casados rurais em 1982. Eles vinham de toda a diocese e representavam diferentes etnias com suas tradições. Estávamos falando do respeito mútuo entre marido e mulher, da colaboração e da corresponsabilidade na condução da família. Domingos Ambona e sua mulher Jinokorut, uma das primeiras colegas de Madalena, acabavam de falar de como na sua família tudo estava em comum, tudo era partilhado. "Mas não o dinheiro!" Intervém um dos cursistas: "A mulher não deve saber quanto o marido ganha!".
Madalena, calmamente, intervém. "Não, a mulher deve conhecer! Demba, o meu malogrado marido, trabalhava como pedreiro nesta missão. Cada fim do mês recebia o envelope com o ordenado. Nem o abria. Trazia-o para casa e juntos contávamos o dinheiro; juntos decidíamos o que gastar e o que poupar e ele o deixava entregue em minhas mãos. Se precisava de comprar qualquer coisa, pedia-me o dinheiro; o mesmo fazia eu, apesar de o dinheiro estar comigo." Lembro que houve um silêncio geral; só depois de um bocado começaram a chover as perguntas. E as respostas.

Graças a Deus a "reação em cadeia" que começou então com Madalena e suas companheiras continua a se expandir. Nas demais aldeias já são bastantes as famílias, nomeadamente as cristãs, em que a forma de se relacionar entre marido e mulher mudou substancialmente e as mulheres, melhor valorizadas, tomam iniciativas nunca vistas antes na forma de melhorar a habitação, na cultivação de hortas para integrar a alimentação e o balanço familiar.
Também mudou a atitude para com os filhos: enfrentam sacrifícios não pequenos para lhes proporcionar continuação nos estudos, e isto não só para os rapazes como também para as moças: privam-se da ajuda delas nos trabalhos domésticos para que se possam instruir e ter uma vida diferente. Muitas são também as jovens casadas que frequentaram cursos de alfabetização.

Vê-se mesmo que a chave do desenvolvimento está nas mãos da mulher, de mulheres como Madalena e suas companheiras: mulheres normais, com o peso de tradições às vezes discriminatórias; mulheres que sentem desde seus corações que foram libertadas por dentro pelo Evangelho de Jesus e testemunham a alegria de ter encontrado, nEle, uma vida nova.



Suzana, 15 de Maio de 1995

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