De bom grado publicamos este tema de reflexão que o p. Domingos Cá, noto biblista da diocese, nos enviou.
TEMA: A MISERICÓRDIA NA BÍBLIA
A misericórdia constitui um dos
temas centrais de toda a revelação bíblica. Esta afirmação, ainda que possa
parecer problemática a alguém, vale também para o Antigo Testamento. No Novo
Testamento Deus é chamado «Pai misericordioso»
(2Cor 1, 3) e a ação salvífica de Jesus Cristo é vista como símbolo mais
significativo da misericórdia ou, simplesmente misericórdia mesma. Sendo, pois,
o homem criado à imagem e semelhança de Deus, não pode admirar-se que a Bíblia
se estenda também sobre a misericórdia que o ser humano é chamado a exercer. As
expressões bíblicas que se referem à misericórdia, seja no Antigo como no Novo
Testamento se dividem, por isso, entre as que tratam da misericórdia de Deus (mais numerosas) e as que tratam da misericórdia humana.
Ao lado da narração das diversas
manifestações da misericórdia divina na história do povo eleito, encontramos
reforçada a afirmação da incomensurabilidade de tal misericórdia em relação à
humanidade. É isto que torna o Deus da revelação bíblica essencialmente diverso
do homem e de qualquer outra divindade que os homens possam adorar. Mas também
a Bíblia fala da misericórdia do homem. Raramente a descreve como uma qualidade
real do homem; na maior parte das vezes a designa como atitude que nós devemos adotar.
Tal é de facto a expectativa de Deus a nosso respeito: que sejamos misericordiosos, porque Ele é misericordioso.
Fazendo nossa esta diferenciação
das expressões bíblicas, vamos em seguida refletir, primeiramente sobre a misericórdia,
seja no Antigo como no Novo Testamento e depois passaremos a ver o que é que os
dois Testamentos nos dizem a propósito da misericórdia do ser humano em relação
ao seu semelhante. Mas antes veremos sumariamente, a terminologia com a qual é
expressa no texto sagrado a ideia da misericórdia tanto de Deus como do homem.
A terminologia
Rachàm, chanàn, chèssad
Nas línguas bíblicas, tanto no
hebraico como no grego, não se releva uma particular riqueza de termos que
exprimem a ideia de misericórdia, entendida como atitude seja de Deus como do
ser humano.
No Antigo Testamento tal
terminologia tem a sua fonte somente em três raízes: rachàm, chanàn, chèssad.
Esta terminologia evoca uma
atitude de ternura, como a de uma mãe pelo seu filho. Com efeito, o termo
hebraico rachàm usado pela Bíblia
leva a pensar nas vísceras, ou então no ventre materno. Por isso, a imagem que
sugere é a de um Deus que se comove e sente ternura por nós, como uma
mãe quando pega o seu filho ao colo, unicamente desejosa de amar, proteger e
ajudar, pronta a doar tudo, até a si mesma. Esta é a imagem que este termo
sugere. Portanto, um amor que se pode definir, no bom sentido, «visceral».
No grego dos Setenta e no Novo
Testamento os termos mais usados para designar a ideia de misericórdia são três
substantivos: ta splànchna, to éleos, ho oiktirmós.
No Novo Testamento, sobretudo nos
Evangelhos sinópticos, o grupo dos derivados splanchnìzomai/splánchna refere-se à pessoa de Jesus, mas às vezes,
especialmente nas parábolas, indica as reações espontâneas do homem diante da
desgraça e das necessidades do próximo. É precisamente com o verbo splanchnìzomai que é descrito o
comportamento do Samaritano diante do homem assaltado pelos ladrões.
I. A MISERICÓRDIA NO ANTIGO TESTAMNTO
- A misericórdia
divina
Apesar da unidade de toda a revelação
bíblica, é possível relevar uma certa diferença nas representações da
misericórdia divina e humana no Antigo e no Novo Testamento.
O objeto da misericórdia de Deus
no Antigo Testamento é sobretudo a descendência de Abraão. Encontramos algumas
expressões que sublinham a misericórdia como a regra do agir de Deus para com o
seu povo: Jhwh manifesta a sua misericórdia sobretudo a Israel.
Jhwh, Deus misericordioso de Israel
Uma das consequências principais
da aliança sinaítica é constituída pelo facto que a escolha de Jhwh de ser o
Deus de Israel comporta, para o povo eleito, o consentimento de ser a sua
propriedade particular. Compreende-se, portanto, o facto de Israel ser o
primeiro destinatário da misericórdia divina.
Jhwh é, portanto, o Deus
misericordioso de Israel. É assim que Ele mesmo se define e é assim que o
reconhecem quantos pertencem ao seu povo. A tradição sinaítica transmite-nos a
promessa de Deus de escutar a oração do seu povo oprimido: «Se clamar a mim, Eu o ouvirei, porque eu Sou
misericordioso» (Ex 22, 26). Aparece desde o início a convicção de que Deus
não pode que reagir com misericórdia diante da miséria humana. Mesmo se é sempre
a humanidade que deve fazer ouvir a voz desta indigência.
Quem dá voz a esta consciência do
hebraísmo acerca da misericórdia de Deus são sobretudo os profetas. Eis o que
confessa o profeta Baruch: «Por causa da
maldade da casa de Israel e de Judá, reduziste o Templo, em que era invocado o
teu nome, ao estado em que hoje se encontra. Tu Senhor nosso Deus, agiste para
connosco com a tua grande misericórdia e bondade» (Bar 2, 26-27).
Nota-se nesta declaração a
consciência da culpa e a convicção de que o seu castigo seja justo. Mas, mesmo
o castigo que os homens sofrem é também um sinal, segundo o profeta, da
benevolência e da misericórdia de Deus.
Não faltam textos que exprimem a
consciência de Israel de não merecer a misericórdia divina, como o texto onde o
profeta Daniel confessa: «Sim, ó Senhor,
para nós a vergonha, para os nossos reis, para os nossos chefes, para os nossos
pais, porque pecámos contra ti. No Senhor nosso Deus há misericórdia e perdão,
pois nos revoltamos contra Ele» (Dn 9, 8-9). Neste sentido podemos ainda
ler o texto de Ne 9, 29-31.
E na narração do profeta Jonas
podemos ler: «Porque sabia que és um Deus
misericordioso e clemente, paciente, cheio de bondade e pronto a renunciar aos
castigos» (Jn 4, 2).
Os adjetivos clemente, misericordioso, longânimo aparecem ainda várias vezes no
Antigo Testamento para descrever a atitude de Deus para com o seu povo. Benevolência
e paciência neste contexto são quase sinónimas de misericórdia.
Quase todas as características da
misericórdia de Deus descritas até agora (e em tantos outros textos) fazem
notar o seguinte:
a sensibilidade à miséria do
pecador, o perdão das suas culpas, a fidelidade às promessas feitas.
E quando os homens pensam que
Deus tarda em manifestar a sua misericórdia começam, então, a perguntar-se com
ânsia: «Porventura, irá o Senhor abandonar-nos
para sempre? Não voltará mais a ser-nos favorável? Acaso se esgotou por
completo o seu amor e revogou as suas promessas às gerações? Ter-se-á Deus
esquecido da sua compaixão, ou terá fechado com ira o seu coração?» (Sl 77,
8-10).
Podemos dizer que Israel, como
nação, sobreviveu graças à misericórdia de Deus. Não perdeu definitivamente a
sua pátria, não ficou para sempre na escravidão, no exílio. A característica mais
significativa da misericórdia de Deus é a paciência. Deus é lento na ira, está
pronto a perdoar e a ser benévolo. Neste sentido a história do povo eleito pode
ser lida como figura da história da humanidade inteira, com todas as sua
quedas, de um lado, e com os gestos da misericórdia divina que se repetem, por
outro lado.
A misericórdia de Deus para com todo o ser vivo
Em virtude da aliança feita no Sianai, a
consciência crente de Israel tendia a ver-se como única destinatária da
misericórdia de Jhwh. Todavia, podemos sublinhar que já no Antigo Testamento se
encontram expressões que corrigem esta convicção. Toda a história do profeta
Jonas pode ser lida como irónica denúncia desta convicção. À raiva do profeta,
causada pela falta de punição dos habitantes de Nínive, Jhwh reage deste modo:
«Julgas tu que tens razão para te indignares por causa deste rícino?
Jonas respondeu: «Sim, tenho razão para me indignar até desejar a morte».
Disse-lhe Deus: «Sentes pena de um
rícino que não te custou trabalho algum para o fazeres crescer, que nasceu numa
noite, e numa noite pereceu! E não hei-de Eu compadecer-me da grande cidade de
Nínive, onde há mais de cento e vinte mil pessoas, que não sabem distinguir
entre a sua direita e a sua mão esquerda e um grande número de animais?»
(Jn 4, 9-11). É muito significativa esta pergunta que conclui o livro de Jonas.
Todos, também o maior dos pecadores, podem, pela vontade do mesmo Deus, reivindicar
o direito à misericórdia divina. Hoje podemos bem afirmar que não há mais
motivos de pensar que a expressão «os que
confiam no Senhor» se refira só aos Israelitas,
Nada nos impede de ver como
dirigida à humanidade inteira, a definição que Deus dá de si mesmo na revelação
do Horeb:
«Senhor! Senhor! Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio
de bondade e de fidelidade, mantém a sua graça até à milésima geração, que
perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado» (Ex 34, 6-6).
No livro dos Salmos lemos:
«O Senhor é clemente e compassivo, é paciente e misericordioso. O Senhor
é bom para com todos; a sua ternura repassa todas as suas obras» (Sl 145,
8-9).
A misericórdia é um modo de
praticar a bondade. Portanto, se o Salmista diz que «o Senhor é bom para com todos» isto quer dizer que o Senhor é
misericordioso para todos.
Estas e outras expressões dos
escritores inspirados do Antigo Testamento sobre o tema da dimensão ilimitada
da misericórdia de Deus, são resumidas deste modo por Ben Sirá:
«A compaixão do homem tem por objeto o próximo, mas a misericórdia
divina estende a todo o ser vivo: repreende, corrige, ensina e reconduz, como
pastor, o seu rebanho. Ele se compadece daqueles que recebem os seus
ensinamentos e dos que se apressam a cumprir os seus preceitos» (Sir 18,
13-14).
A misericórdia de Deus para os que sofrem e os oprimidos
É próprio da misericórdia, seja
divina que humana, dirigir-se para aqueles que são esmagados pela opressão e se
encontram na necessidade. Se é verdade, como afirma Ben Sira, que «a misericórdia de Deus se estende sobre toda
a criatura», é ainda mais verdade que Deus tem, para assim dizer, uma
inclinação particular para os fracos e os que sofrem. Nisto mesmo parece resumir-se
a revelação do Deus de Israel: «Eu bem vi
a opressão do meu povo que está no Egipto, e ouvi o seu clamor diante dos seus inspetores;
conheço, na verdade, os seus sofrimentos. Desci a fim de o libertar e de o fazer
subir desta terra para uma terra boa e espaçosa, para uma terra que mana leite
e mel» (Ex 3, 7-8). É o Deus que o Salmo 146 canta magistralmente:
«Ele é eternamente fiel à sua palavra; salva os oprimidos, dá pão aos
que têm fome; o Senhor liberta os prisioneiros. O Senhor dá vista aos cegos, o
Senhor levanta os abatidos; o Senhor ama o homem justo. O Senhor protege os que
vivem em terra estranha e ampara o órfão e a viúva» (Sl 146, 8-9).
A Bíblia é rica de exemplos que
mostram esta atitude de Deus. Na história de José (Gn 39, 20-23), lemos como
Deus, olhando a sua condição, mudou a sua sorte.
As viúvas e os órfãos eram objeto
de uma atenção e respeito particulares nos escritos do Antigo Testamento, já a
partir da aliança sinaítica até aos últimos profetas. Oseias afirma muito claro:
«Pois só junto de ti o órfão encontra
compaixão» (Os 14, 4). A insensibilidade perante a sorte das viúvas e dos
órfãos é sempre considerada como sinal de degeneração de uma sociedade.
Cantando os louvores da misericórdia
No Antigo Testamento numerosos
são também os textos nos quais é exprimido o louvor e o reconhecimento do homem
pela misericórdia que Deus manifestou. Sem dúvida o exemplo mais característico
que temos é representado pelos Salmos. E a expressão mais alta e solene de tal
reconhecimento e gratidão nos é oferecida pelo Salmo 136, definido como hino de louvor e de agradecimento, a
carácter litânico.
2. A misericórdia humana
A exortação: «Sede misericordiosas como o vosso Pai é
misericordioso» (Lc 6, 36) é do Novo Testamento, mas também o Antigo
Testamento fala muitas vezes da necessidade da misericórdia humana, descrevendo
as obras da misericórdia. Tal atitude misericordioso do homem pode dizer-se e
realizar-se seja em relação a Deus seja em relação ao próximo.
Quero misericórdia e não o sacrifício
O amor, a misericórdia é próprio o que Deus espera do homem. Já a
revelação do Antigo Testamento nos mostra um Deus não indiferente à gratidão do
homem, ao seu amor e à sua misericórdia.
«Porque eu quero a misericórdia e não os sacrifícios, o conhecimento de
Deus mais que os holocaustos» (Os 6, 6).
E sabemos que «conhecimento» na
Bíblia não significa um processo puramente intelectual. No conhecimento
participa não só a mente, mas também o coração. Conhecer alguém significa
também amá-lo.
A misericórdia para com o semelhante
O cultivo, o cuidado dos
sentimentos nobres de misericórdia no homem constituem a essência de uma
verdadeira religiosidade. Lemos no profeta Isaías:
«O jejum que me agrada é este: libertar os que foram presos injustamente,
livrá-los do jugo que levam às costas, pôr em liberdade os oprimidos, quebrar
toda a espécie de opressão, repartir o teu pão com os esfomeados, dar abrigo
aos infelizes sem casa, atender e vestir os nus e não desprezar o teu irmão.
Então, a tua luz surgirá como a aurora, e as tuas feridas não tardarão a
cicatrizar-se. A tua justiça irá à tua frente e a glória do Senhor atrás de ti»
(Is 58, 6-9).
E no código moral do Êxodo,
encontramos, entre numerosas prescrições, esta:
«Se penhorares o manto do teu próximo, devolver-lho-ás até ao pôr-do-sol,
porque a capa é tudo o que ele tem para cobrir a pele. Com que é que ele se
deitaria? E se vier a clamar a mim, ouvi-lo-ei, porque Eu sou misericordioso»
(Ex 22, 25-26).
A indicação é clara: para quem
devesse escolher entre o próprio direito e a situação de necessidade do pobre,
o Antigo Testamento dá prioridade a este último, afirmando inequivocamente as
razões da misericórdia.
Podemos então dizer que já desde
o Antigo Testamento não só é bem formulado o mandamento do amor para o próximo,
mas temos também muitas exortações a praticar a misericórdia.
II. A MISERICÓRDIA NO NOVO TESTAMENTO
Analogamente ao esquema seguido
para o Antigo Testamento, nesta secção dedicada à perspetiva neotestamentária
sobre o tema da misericórdia, trataremos antes, da misericórdia de Deus e,
sucessivamente da misericórdia nas relações humanas.
1. A misericórdia divina
Podemos afirmar que a maior parte
das afirmações que encontramos nos Evangelhos a propósito da misericórdia do
Pai foram provocadas pelas opiniões dos fariseus, que condenavam impiedosamente
ao isolamento e à marginalização os pecadores do seu tempo, declarando-lhes
inexoravelmente perdidos. A verdade, como já vimos, é outra. De facto, através
dos seus profetas, Jhwh declarou, uma vez por todas, que não quer a morte do
pecador, mas quer que se converta e viva (cf. Ez 33, 11). Jesus, por sua parte,
expressou com os seus ensinamentos, a mesma verdade relativa à misericórdia do
Pai celeste.
A pregação (catequese) de Jesus é
cheia de misericórdia. Evangelho significa de facto “boa notícia”. Era
necessário sustentar as pessoas no espírito, era necessário dizer-lhes alguma
coisa que lhes restituísse confiança e vida. O Evangelho, a boa notícia, é, por
sua natureza, mensagem de misericórdia.
O anúncio do Evangelho apresenta-se
como um anúncio de salvação que tem a ver com a totalidade da criatura humana,
no seu aspeto físico, psicológico e espiritual. Jesus se preocupa em aliviar
todo o sofrimento do homem.
Diante dos seus conterrâneos, em
Nazaré, Ele expõe as palavras do profeta Isaías: «O Espírito do Senhor está sobre mim, porque Ele me ungiu e me enviou a
anunciar a Boa-Nova aos pobres, a proclamar a libertação aos cativos e o dom da
vista aos cegos, a pôr em liberdade os oprimidos e a promulgar um ano de
acolhimento por parte do Senhor» (Lc 4, 18-19. Segundo S. Lucas, estas
afirmações são a sua primeira declaração messiânica, à qual se seguem os factos
e as palavras conhecidos por intermédio do Evangelho. Mediante tais factos e
palavras, Cristo torna o Pai presente no meio dos homens.
É muito significativo que estes
homens sejam sobretudo os pobres, carecidos dos meios de subsistência, os que
estão privados da liberdade, os cegos que não veem a beleza da criação, os que
vivem com a amargura no coração, ou então os que sofrem por causa da injustiça
social e, por fim, os pecadores. Em relação a estes últimos, de modo especial,
o Messias torna-se sinal particularmente legível de Deus que é misericordioso,
torna-se sinal do Pai. Do mesmo modo que os homens de então, também os homens
do nosso tempo podem ver o Pai, neste sinal visível.
É igualmente significativo que,
quando os mensageiros enviados por João Baptista vieram ter com Jesus e lhe
perguntaram — «Tu és Aquele que está para
vir, ou temos que esperar outro?» (Mt 11, 3) — Ele, referindo-se ao mesmo
testemunho com que havia inaugurado o seu ensino em Nazaré, lhes tenha
respondido: «Ide contar a João o que
vistes e ouvistes: os cegos veem, os coxos andam, os leprosos ficam limpos, os
surdos ouvem, os mortos ressuscitam, aos pobres é anunciada a Boa-Nova» (Mt
11, 4-5); e é ainda significativo que tenha depois concluído: «Bem-aventurado aquele que não se
escandalizar a meu respeito» (Mt 11, 6).
Jesus revelou, sobretudo com o
seu estilo de vida e com as suas ações, como está presente o amor no mundo em
que vivemos, amor operante, amor que se dirige ao homem e abraça tudo quanto
constitui a sua humanidade. Tal amor transparece especialmente no contacto com
o sofrimento, injustiça e pobreza; no contacto com toda a «condição humana»
histórica, que de vários modos manifesta as limitações e a fragilidade, tanto
físicas como morais, do homem. Precisamente o modo e o âmbito em que se
manifesta o amor são chamados na linguagem bíblica «misericórdia».
Baseando-se neste modo de
manifestar a presença de Deus, que é Pai, amor e misericórdia, Jesus faz da
mesma misericórdia um dos principais temas da sua pregação. Como de costume,
também neste ponto ensina antes de mais «em parábolas», porque exprimem melhor
a própria essência das coisas. Basta recordar a parábola do filho pródigo (Lc
15, 11-32), ou a parábola do bom samaritano (Lc 10, 25-37), ou ainda, por
contraste, a do servo sem compaixão. Numerosas são ainda as passagens do
ensinamento de Cristo que manifestam o amor e misericórdia sob um aspeto sempre
novo. Basta ter diante dos olhos o bom pastor que vai à busca da ovelha
tresmalhada, ou a mulher que varre a casa à procura da dracma perdida.
O Filho pródigo
Entre os quatro evangelistas
Lucas mereceu ser chamado evangelista da misericórdia, dado que no seu
Evangelho, enfrenta repetidamente este tema.
Mais de metade do capítulo 15 de
Lucas é ocupada pela parábola do Filho pródigo (Lc 15, 11-32). Esta parábola é
a mais ampla descrição da misericórdia de Deus.
E precisamente por causa da
centralidade do tema da misericórdia, a parábola deveria ser intitulada não
tanto “do filho pródigo” mas sim “do pai misericordioso”.
A narração desta parábola - como
as da dracma perdida e da ovelha perdida – parte do facto das murmurações dos
fariseus e dos escribas, que criticavam Jesus porque recebia os pecadores e
comia com eles. O que, para eles, representava, objetivamente, uma novidade
inaceitável.
A parábola do filho pródigo
exprime, de maneira simples mas profunda, a realidade da conversão, que é a
mais concreta expressão da obra do amor e da presença da misericórdia no mundo
humano. O verdadeiro significado da misericórdia não consiste apenas no olhar,
por mais penetrante e mais cheio de compaixão que seja, com que se encara o mal
moral, físico ou material. A misericórdia manifesta-se com a sua fisionomia
característica quando reavalia, promove e sabe tirar o bem de todas as formas
de mal existentes no mundo e no homem. Entendida desta maneira, constitui o
conteúdo fundamental da mensagem messiânica de Cristo e a força constitutiva da
sua missão. Desta mesma maneira entendiam e praticavam a misericórdia os
discípulos e seguidores de Cristo. A misericórdia nunca cessou de se manifestar
nos seus corações e nas suas obras, como prova particularmente criadora do
amor, que não se deixa «vencer pelo mal»,
mas vence «o mal com o bem» É preciso
que o rosto genuíno da misericórdia seja sempre descoberto de maneira nova. Não
obstante vários preconceitos, a misericórdia apresenta-se como particularmente
necessária nos nossos tempos.
Em síntese, a missão salvífica de
Jesus nasce da misericórdia de Deus para com o género humano, isto é, para com
os homens oprimidos, fracos, doentes, abandonados a si mesmos. Jesus Cristo é a
revelação da misericórdia de Deus ou melhor, é a sua personificação.
2. A misericórdia humana
Já vimos, mais acima, como também
no Novo Testamento esteja presente a exigência da misericórdia como fundamento
da relação entre os seres humanos.
Não é sem significado o contexto
em que é lembrada pela primeira vez nos Evangelhos a citação de Oseias: «Quero misericórdia e não sacrifícios» a
que já nos referimos. Jesus pronuncia estas palavras durante um banquete em
casa de Mateus, logo depois de o ter chamado para fazer parte do seu grupo.
A parábola do bom Samaritano
Esta parábola encontra-se só no
Evangelho de Lucas, que já definimos como evangelista da misericórdia
É uma das parábolas mais
provocatórias de Jesus. À pergunta que lhe foi dirigida pelo doutor da Lei: «Quem é o meu próximo?» Jesus responde
com toda a parábola do Samaritano misericordioso. E na conclusão da narração, é
ele (Jesus) que dirige ao seu interlocutor uma pergunta: «Qual dos três te parece ter sido o próximo daquele homem que caiu nas
mãos dos salteadores?».
Aquele parecia interessado ao objeto
do amor, Jesus o reenvia ao sujeito. O doutor da Lei pergunta quem é o meu próximo, Jesus pergunta quem se faz próximo.
A parábola do bom Samaritano dá
sentido à vida humana: fazer-se próximo do outro porque, em definitivo, Deus Se
aproximou e continua a inclinar-Se em Cristo sobre as feridas humanas. Tal
mudança põe em causa o doutor da Lei e impõe-lhe uma mudança de mentalidade.
Não se trata de escolher entre o amor a Deus e aquele para com o próximo, mas
de reconhecer que quem ama o irmão que vê, ama sempre a Deus que não vê, embora
o contrário nem sempre aconteça, sendo esta uma amarga realidade da vida
humana. O amor a Deus passa sempre pelo amor ao outro de quem nos devemos fazer
próximos.
Falar da misericórdia pode ser tão
fácil quanto inútil. Não há misericórdia que não seja uma prática. O sacerdote
e o levita com certeza conheciam perfeitamente a Lei e todos os seus minuciosos
preceitos, a que todo o hebreu é vinculado, e provavelmente teriam sabido
fornecer uma boa definição da misericórdia e do próximo.
Outras parábolas:
O rico e Lázaro (Lc 16, 19-31), o
Rei misericordioso (Mt 18, 21-35).
Em síntese, a missão salvífica de
Jesus nasce da misericórdia de Deus para com o género humano, isto é, para com
os homens oprimidos, fracos, doentes, abandonados a si mesmos. Jesus Cristo é a
revelação da misericórdia, ou, mais precisamente, a sua personificação.
Misericórdia e mistério pascal
Não podíamos terminar a reflexão
sobre a misericórdia no Novo Testamento sem nos referirmos ao mistério pascal.
O mistério pascal é o ponto
culminante da revelação e atuação da misericórdia, capaz de justificar o homem,
e de restabelecer a justiça como realização do desígnio salvífico que Deus,
desde o princípio, tinha querido realizar no homem e, por meio do homem, no
mundo, Cristo, ao sofrer, interpela todo e cada homem e não apenas o homem
crente. Até o homem que não crê poderá descobrir nele a eloquência da
solidariedade com o destino humano, bem como a harmoniosa plenitude da
dedicação desinteressada à causa do homem, à verdade e ao amor.
CONCLUSÃO
Contrariamente a toda conceção
que possa ainda ver em Yhwh um Deus iroso e severo, contraposto ao Deus de
Jesus Cristo, podemos afirmar de ter descoberto quanto, ao contrário, seja rica
e superabundante a presença da misericórdia divina ainda no Antigo Testamento.
É esta misericórdia que Israel confessa, louva e invoca, e é convidado pelos
profetas à prática desta mesma misericórdia.
O Novo Testamento abre e torna
acessível a todos os povos a revelação histórica que era destinada ao povo
hebreu. Através da figura do Filho, na pessoa de Jesus de Nazaré, Deus se
revela como misericórdia, que incondicionalmente, age e salva dentro da história
do mundo.
A misericórdia, enquanto
qualidade de Deus, constitui o ponto de partida de toda a antropologia bíblica,
porque o homem é criado à imagem e semelhança de Deus. Esta é uma
particularidade do monoteísmo bíblico. Os crentes são chamados, ao longo de
toda a sua vida a ser, porquanto humanamente possível, também, e sobretudo, no
plano da misericórdia, semelhantes a Deus.
Além desta vocação intrínseca do
ser humano a ser semelhante a Deus, existem ainda outros motivos pelos quais
devemos manifestar misericórdia ao nosso próximo. Um destes motivos é o sentido
de gratidão pela misericórdia experimentada. Este motivo aparece já no Antigo
Testamento, e encontra a sua confirmação no ensinamento que Jesus nos dirige
através da parábola do rei misericordioso, assim como na oração do Pai nosso.
Podemos ler neste sentido as
palavras já citadas do oráculo de Oseias:
«Quero misericórdia e não sacrifícios». Não são os sacrifícios ou as
práticas do culto que podem recompensar a
misericórdia com que Deus nos tratou, mas somente uma análoga atitude em relação ao
nosso próximo.
Enfim, Jesus Cristo ensinou que o
homem não só recebe e experimenta a misericórdia de Deus, mas é também chamado
a «ter misericórdia» para com os demais. «Bem-aventurados
os misericordiosos, porque alcançarão misericórdia» (Mt 5, 7). A Igreja vê
nestas palavras um apelo à ação e esforça-se por praticar a misericórdia. Se
todas as bem-aventuranças do Sermão da Montanha indicam o caminho da conversão
e da mudança de vida, a que se refere aos misericordiosos é particularmente
eloquente a tal respeito. O homem alcança o amor misericordioso de Deus e a sua
misericórdia, na medida em que ele próprio se transforma interiormente, segundo
o espírito de amor para com o próximo.
É praticando a misericórdia que nos será dado
entrar no mistério mesmo de Deus, contemplá-lo, de um certo modo, desde agora e
vivê-lo depois na eternidade sem fim.
P. Domingos Cá