Figuras de cristãos exemplares
Da carta aos amigos "Notizie da Katon" de
22.09.2003
Caríssimos, desta vez quero falar-vos duma pessoa particular, que faleceu
mesmo ontem à noite. Trata-se de Henrique Pitrikó que muitos de vocês
conheciam. Hoje à tarde faremos o enterro, que
será uma homenagem a quanto Deus sabe realizar nas pessoas humildes e bem
dispostas. Era um rapazinho como muitos outros, melhor, um bocado mais
fraquinho do que os outros, a sua
saúde não o ajudava: um punhado de ossos e mais nada, quer ele quer o
irmão, mais novo, que faleceu antes dele e a quem tinham posto mesmo o nome de
Nahóte, que quer dizer "murcha", visto que não crescia.
O pai era um Jeju, quer dizer da linhagem dos ferreiros, os que trabalham na forja: uma linhagem
que incute respeito: lida com o fogo. Ele tinha duas mulheres. O rapazinho,
depois de ter passado pelo fanado, em Outubro de 1968 matriculou-se na escola
juntamente com um grande grupo
de colegas: eu acabava de chegar a Suzana. Ao mesmo tempo quis frequentar
também a catequese. Em casa levantou-se uma guerra a valer, mas ele aguentou!
Era um carácter forte, por certos aspectos um bocado rúvido também, mas
decidido quanto basta; se digo que faço algo, faço-o mesmo: ano após ano sempre
passou de classe, coisa que por estes lados não é muito frequente; o mesmo foi
no que respeita à catequese: parecia voar, pelos
rapidíssimos progressos que nela fazia. Estava entusiasmado por Jesus.
Tanto que pe Marmugi, apesar da idade por ele aparentada, decidiu baptizá-lo já
em 1970.
Em 1976 apresenta-se à porta da oficina da missão: o irmão Renato Rovelli
acabava de chegar e
podíamos pensar em organizar algo para a rapaziada aprender alguma arte.
Antes da chegada do
irmão Renato a oficina ficava fechada três semanas em cada mês, quando eu
ficava nas comunidades e então era impossível organizar qualquer tipo de escola
para aprendizagem de artes e ofícios. As nuvens vão se adensando sobre Pitrikó:
o pai não quer que ele se aproxime demais da missão. Sim, mas quem consegue
pará-lo? "Ah, é assim que ele quer? Então vai almoçar à missão!". E
ele, a meio-dia e meio, ao sair da oficina, vai pelo mato adentro procurando
frutos silvestres com que enganar a fome. Ele sofre e cala. Nós não sabemos nada
do que se está a passar, ele não mendiga compaixão... Talvez não queira que se
julgue mal a atitude do pai. De qualquer forma ele vai levar a melhor: logo no início
do tempo da chuva ele pega no seu arado e... vai ajudar o pai na lavoura.
Não há argumentação melhor: as coisas estão claras: ele sabe o que quer, em
casa compreendem
que está a fazer a sério e respeitam suas decisões; a conversa acabou e ele
conquistou sua liberdade de voltar para a oficina e... para a catequese. Mas
ele não quer ficar com o que aprende, não quer que sirva só para ele e vai se
inscrever entre os tocadores de tambor na igreja, interessa-se pelos ensaios
dos cânticos e apresenta-se como voluntário para se tornar catequista.
Na altura estava nascendo a Diocese de Bissau e junto com ela uma tentativa
de formação unitária
dos catequistas. Eu encontro-me também envolvido nesta iniciativa, mais
ainda a Comissão
Diocesana de Catequese quer que eu assuma a responsabilidade de tal
formação. Assumo e aproveito para nela inserir um grupo de jovens de Suzana,
entre eles o Pitriko. Os catequistas adultos, residentes, pela quase totalidade
analfabetos estão se revelando insubstituíveis, mas não é suficiente.
Precisamos de catequistas que possam pegar em textos, aprofundar mensagens
através da leitura. Pitrikó e colegas têm quarta classe: não é muito, mas
já é algo mais do que nada. Empreendem então uma caminhada de formação que
comporta estágios sucessivos, de que vão gostando e não perdem deles nem um
sequer. Pitrikó começa a ser apreciado como alguém consequente: como avança nos
conhecimentos, assim também quer avançar em sua aplicação. Não se esconde atrás
de"conveniências" e vai diretamente ao assunto, chama as coisas com
os respetivos nomes com simplicidade e com entusiasmo. Logo há quem não goste,
mas o Pitrikó sempre deixa sinais marcantes, onde quer que passe. Foi assim que
começaram a chamá-lo também noutras comunidades...
Na nossa oficina apreende a trabalhar o ferro, a soldar, a fazer carpinteira
metálica, especializando-se na cobertura de edifícios com estruturas ligeiras
em ferro e chapas de zinco, chapas em fibra de vidro etc. preciso, aplicado
como sempre. o trabalho deve ser bem feito!...
Por causa da sua fraca saúde teve que fazer prolongadas estadias fora de
Suzana para se tratar, a
Ziguinchor, a Catió e sempre aproveitou para aprender novas técnicas para o
trabalho da horta, para cultivo da fruta, para fazer enxertias, e começou a ser
chamado nas tabancas vizinhas... e
com as técnicas, também transmite Evangelho, não cala e não para. Investe o
dinheiro ganho em duas hortas, onde não só trabalha manualmente, mas também com
trator, que naturalmente não descuidou de aprender. Mas não só: também se
aplica com o trator na reparação das estradas mais "perdidas" no
mato, permitindo alcançar melhor as tabancas
em que estão surgindo novas comunidades: depois de não poucos anos ainda há
destas reparações à vista, ainda eficientes, tão foi cuidadoso o trabalho por
ele executado!
Nunca larga a catequese e prepara catecúmenos para os sacramentos da
Iniciação. Ao nascer da Pastoral Familiar a nível de Sector Pastoral e, a
seguir, a nível Diocesano, envolve-se nela com convicção tornando-se um
animador a nível de Diocese. Aprende, aplica e ensina os métodos naturais para
a regulação da fertilidade tornando-se um perito do método Billings,
colaborador indispensável nos cursos de preparação ao matrimónio, nos quais se
aplica com paixão.
Uma das suas características é de ser como uma formiga, sempre activo, sem
fazer barulho, indo à
procura de um ou de outro dos que se perderam: vai dizer a sua a todos,
também a mim, como
antes dele faziam Ambona e Demba; não me manda a dizer nada: ele é que vem
ter comigo com
suas observações, feitas às vezes duma forma um bocado desajeitada, mas
pertinentes. Nem sempre as reacções dos interlocutores são meigas, às vezes
recebe respostas "contundentes", das que fazem mesmo mal, mas ele não
demorde. E quando a comunidade ameaça desandar, ele vai direitinho, continua no
caminho, suportando represálias e insultos, mas sempre fiel, sempre cumpridor, tornando-se
desta forma ponto de referência para os outros.
Característica a sua casa, toda ela afrescada com histórias bíblicas: uma
verdadeira igreja doméstica, onde ele juntava pessoas para a catequese e a
oração, ajudado nisso pela sua esposa Dina, ela também catequista e animadora
familiar, capaz de aguentar o passo do marido, nem que a preço de muitos
sacrifícios. De repente apareceu a doença. Um verdadeiro Calvário de dois anos.
Parecia que depois de muitas tentativas por fim encontrámos o caminho para ir à
Europa tratar da coluna, quando surgiu mais uma complicação que,
impiedosamente, bloqueou tudo: cirrose hepática! E ele nem bebia! O médico fala
em tumor ao fígado. Ele suporta com fé. Reza.
Os comentários "tradicionais" nem sempre benévolos imperversam:
ele sempre tem uma resposta de fé: catequista até ao último! Repito a ele o que
disse a Demba trinta anos atrás: tens que nos explicar a lição mais difícil do catecismo,
a saber como é que um cristão carrega aos ombros a cruz juntamente com Jesus.
Aceita. E cumpre. Recebe com fé e convicção os Santos Óleos, a Unção dos
enfermos, comunga à Eucaristia. É o seu Viático. No mesmo dia morre: Jesus o
levou consigo, fiel até ao fim.
O Evangelho que será proclamado no funeral será mesmo este: "Vem,
servo bom e fiel, vem
alegrar-te com o teu Senhor!". Se não merecer ele ouvir tais
palavras... As lágrimas vêm aos olhos, mas o coração canta a Glória do Senhor
que "fez nele grandes maravilhas". Nele como em muitas outras pessoas
simples, que nem conhecemos, mas que o Espírito faz florescer ao nosso lado.
Quis partilhar convosco este dom que o Senhor nos fez para nos ajudar a
OLHAR PARA FRENTE.
Vezes demais ouve-se falar de África e de Africanos como de gente perdida,
deixada por trás no
caminho da história. Figuras como que de "zombis", que nunca
conseguirão alcançar o resto do
mundo no caminho da vida, nem multiplicando ajudas, congressos e coisas
parecidas. Mas o Senhor faz-me encontrar pessoas como Pitrikó. Nem é o único,
já vos falei de outros parecidos com ele, analfabetos ou quase: Pitrikó só
tinha diploma da quarta classe, mas o caminhar
com eles enriqueceu-me. E fico mesmo agradecido a Deus por esta aventura.
Acho que há também muita outra gente que comigo deve agradecer a Deus o dom
de Pitrikó e dos
outros, muitos que passaram por cá e tiveram a sorte de os conhecer. Jesus
também agradeceu ao Pai porque se deu a conhecer aos pobres e aos humildes... É
um "retorno" estupendo que o Senhor nos proporciona se nos
empenharmos a sério a seguí-Lo e a anunciá-Lo a todos, para que O encontrem e
nEle floresçam."
Suzana 22.09.2009