sexta-feira, 27 de janeiro de 2017

Henrique Pitrikó


Figuras de cristãos exemplares 

Da carta aos amigos "Notizie da Katon" de 22.09.2003

Caríssimos, desta vez quero falar-vos duma pessoa particular, que faleceu mesmo ontem à noite. Trata-se de Henrique Pitrikó que muitos de vocês conheciam. Hoje à tarde faremos o enterro, que
será uma homenagem a quanto Deus sabe realizar nas pessoas humildes e bem dispostas. Era um rapazinho como muitos outros, melhor, um bocado mais fraquinho do que os outros, a sua
saúde não o ajudava: um punhado de ossos e mais nada, quer ele quer o irmão, mais novo, que faleceu antes dele e a quem tinham posto mesmo o nome de Nahóte, que quer dizer "murcha", visto que não crescia.

O pai era um Jeju, quer dizer da linhagem dos ferreiros, os que trabalham na forja: uma linhagem
que incute respeito: lida com o fogo. Ele tinha duas mulheres. O rapazinho, depois de ter passado pelo fanado, em Outubro de 1968 matriculou-se na escola juntamente com um grande grupo
de colegas: eu acabava de chegar a Suzana. Ao mesmo tempo quis frequentar também a catequese. Em casa levantou-se uma guerra a valer, mas ele aguentou!
Era um carácter forte, por certos aspectos um bocado rúvido também, mas decidido quanto basta; se digo que faço algo, faço-o mesmo: ano após ano sempre passou de classe, coisa que por estes lados não é muito frequente; o mesmo foi no que respeita à catequese: parecia voar, pelos
rapidíssimos progressos que nela fazia. Estava entusiasmado por Jesus. Tanto que pe Marmugi, apesar da idade por ele aparentada, decidiu baptizá-lo já em 1970.
Em 1976 apresenta-se à porta da oficina da missão: o irmão Renato Rovelli acabava de chegar e
podíamos pensar em organizar algo para a rapaziada aprender alguma arte. Antes da chegada do
irmão Renato a oficina ficava fechada três semanas em cada mês, quando eu ficava nas comunidades e então era impossível organizar qualquer tipo de escola para aprendizagem de artes e ofícios. As nuvens vão se adensando sobre Pitrikó: o pai não quer que ele se aproxime demais da missão. Sim, mas quem consegue pará-lo? "Ah, é assim que ele quer? Então vai almoçar à missão!". E ele, a meio-dia e meio, ao sair da oficina, vai pelo mato adentro procurando frutos silvestres com que enganar a fome. Ele sofre e cala. Nós não sabemos nada do que se está a passar, ele não mendiga compaixão... Talvez não queira que se julgue mal a atitude do pai. De qualquer forma ele vai levar a melhor: logo no início do tempo da chuva ele pega no seu arado e... vai ajudar o pai na lavoura.
Não há argumentação melhor: as coisas estão claras: ele sabe o que quer, em casa compreendem
que está a fazer a sério e respeitam suas decisões; a conversa acabou e ele conquistou sua liberdade de voltar para a oficina e... para a catequese. Mas ele não quer ficar com o que aprende, não quer que sirva só para ele e vai se inscrever entre os tocadores de tambor na igreja, interessa-se pelos ensaios dos cânticos e apresenta-se como voluntário para se tornar catequista.
Na altura estava nascendo a Diocese de Bissau e junto com ela uma tentativa de formação unitária
dos catequistas. Eu encontro-me também envolvido nesta iniciativa, mais ainda a Comissão
Diocesana de Catequese quer que eu assuma a responsabilidade de tal formação. Assumo e aproveito para nela inserir um grupo de jovens de Suzana, entre eles o Pitriko. Os catequistas adultos, residentes, pela quase totalidade analfabetos estão se revelando insubstituíveis, mas não é suficiente. Precisamos de catequistas que possam pegar em textos, aprofundar mensagens
através da leitura. Pitrikó e colegas têm quarta classe: não é muito, mas já é algo mais do que nada. Empreendem então uma caminhada de formação que comporta estágios sucessivos, de que vão gostando e não perdem deles nem um sequer. Pitrikó começa a ser apreciado como alguém consequente: como avança nos conhecimentos, assim também quer avançar em sua aplicação. Não se esconde atrás de"conveniências" e vai diretamente ao assunto, chama as coisas com os respetivos nomes com simplicidade e com entusiasmo. Logo há quem não goste, mas o Pitrikó sempre deixa sinais marcantes, onde quer que passe. Foi assim que começaram a chamá-lo também noutras comunidades...
Na nossa oficina apreende a trabalhar o ferro, a soldar, a fazer carpinteira metálica, especializando-se na cobertura de edifícios com estruturas ligeiras em ferro e chapas de zinco, chapas em fibra de vidro etc. preciso, aplicado como sempre. o trabalho deve ser bem feito!...
Por causa da sua fraca saúde teve que fazer prolongadas estadias fora de Suzana para se tratar, a
Ziguinchor, a Catió e sempre aproveitou para aprender novas técnicas para o trabalho da horta, para cultivo da fruta, para fazer enxertias, e começou a ser chamado nas tabancas vizinhas... e com as técnicas, também transmite Evangelho, não cala e não para. Investe o dinheiro ganho em duas hortas, onde não só trabalha manualmente, mas também com trator, que naturalmente não descuidou de aprender. Mas não só: também se aplica com o trator na reparação das estradas mais "perdidas" no mato, permitindo alcançar melhor as tabancas em que estão surgindo novas comunidades: depois de não poucos anos ainda há destas reparações à vista, ainda eficientes, tão foi cuidadoso o trabalho por ele executado!
Nunca larga a catequese e prepara catecúmenos para os sacramentos da Iniciação. Ao nascer da Pastoral Familiar a nível de Sector Pastoral e, a seguir, a nível Diocesano, envolve-se nela com convicção tornando-se um animador a nível de Diocese. Aprende, aplica e ensina os métodos naturais para a regulação da fertilidade tornando-se um perito do método Billings, colaborador indispensável nos cursos de preparação ao matrimónio, nos quais se aplica com paixão.
Uma das suas características é de ser como uma formiga, sempre activo, sem fazer barulho, indo à
procura de um ou de outro dos que se perderam: vai dizer a sua a todos, também a mim, como
antes dele faziam Ambona e Demba; não me manda a dizer nada: ele é que vem ter comigo com
suas observações, feitas às vezes duma forma um bocado desajeitada, mas pertinentes. Nem sempre as reacções dos interlocutores são meigas, às vezes recebe respostas "contundentes", das que fazem mesmo mal, mas ele não demorde. E quando a comunidade ameaça desandar, ele vai direitinho, continua no caminho, suportando represálias e insultos, mas sempre fiel, sempre cumpridor, tornando-se desta forma ponto de referência para os outros.
Característica a sua casa, toda ela afrescada com histórias bíblicas: uma verdadeira igreja doméstica, onde ele juntava pessoas para a catequese e a oração, ajudado nisso pela sua esposa Dina, ela também catequista e animadora familiar, capaz de aguentar o passo do marido, nem que a preço de muitos sacrifícios. De repente apareceu a doença. Um verdadeiro Calvário de dois anos. Parecia que depois de muitas tentativas por fim encontrámos o caminho para ir à Europa tratar da coluna, quando surgiu mais uma complicação que, impiedosamente, bloqueou tudo: cirrose hepática! E ele nem bebia! O médico fala em tumor ao fígado. Ele suporta com fé. Reza.
Os comentários "tradicionais" nem sempre benévolos imperversam: ele sempre tem uma resposta de fé: catequista até ao último! Repito a ele o que disse a Demba trinta anos atrás: tens que nos explicar a lição mais difícil do catecismo, a saber como é que um cristão carrega aos ombros a cruz juntamente com Jesus. Aceita. E cumpre. Recebe com fé e convicção os Santos Óleos, a Unção dos enfermos, comunga à Eucaristia. É o seu Viático. No mesmo dia morre: Jesus o levou consigo, fiel até ao fim.
O Evangelho que será proclamado no funeral será mesmo este: "Vem, servo bom e fiel, vem
alegrar-te com o teu Senhor!". Se não merecer ele ouvir tais palavras... As lágrimas vêm aos olhos, mas o coração canta a Glória do Senhor que "fez nele grandes maravilhas". Nele como em muitas outras pessoas simples, que nem conhecemos, mas que o Espírito faz florescer ao nosso lado.
Quis partilhar convosco este dom que o Senhor nos fez para nos ajudar a OLHAR PARA FRENTE.
Vezes demais ouve-se falar de África e de Africanos como de gente perdida, deixada por trás no
caminho da história. Figuras como que de "zombis", que nunca conseguirão alcançar o resto do
mundo no caminho da vida, nem multiplicando ajudas, congressos e coisas parecidas. Mas o Senhor faz-me encontrar pessoas como Pitrikó. Nem é o único, já vos falei de outros parecidos com ele, analfabetos ou quase: Pitrikó só tinha diploma da quarta classe, mas o caminhar
com eles enriqueceu-me. E fico mesmo agradecido a Deus por esta aventura.
Acho que há também muita outra gente que comigo deve agradecer a Deus o dom de Pitrikó e dos
outros, muitos que passaram por cá e tiveram a sorte de os conhecer. Jesus também agradeceu ao Pai porque se deu a conhecer aos pobres e aos humildes... É um "retorno" estupendo que o Senhor nos proporciona se nos empenharmos a sério a seguí-Lo e a anunciá-Lo a todos, para que O encontrem e nEle floresçam."


Suzana 22.09.2009

O seminário maior comemora o falecimento de D. Settimio



D. Settimio, primeiro bispo da diocese de Bissau, foi uma figura de destaque para a sua diocese, tanto que alguém chegou a dizer que “era um Guineense que nasceu por engano na Itália” (D. Settimio era de origem italiana). Nesta terra de Guiné ele viveu como missionário durante 44 anos, tendo chegado em 1955 com dois confrades franciscanos para servir aos leprosos de Cumura. Em seguida ele foi nomeado bispo (em 1977) da recém-criada diocese de Bissau, trabalhando incansavelmente pela implantação da Igreja nos difíceis anos da independência. 

Faleceu inesperadamente a 27 de Janeiro de 1999, enquanto estava a regressar de Itália para tentar mediar entre as partes em conflito (o presidente Nino e o general Ansumane Mané). Não conseguiu, mas o seu exemplo de homem de paz marcou profundamente a sua diocese.
Hoje o seminário maior inter-diocesano quis lembra-lo com uma Jornada Académica. Depois da s. Missa houve uma palestra  subordinada ao tema: “Preparar os futuros sacerdotes para enfrentar os desafios a nova evangelização”, oferecida pelo bispo auxiliar de Bissau, D. José Lampra Cá. 


quarta-feira, 25 de janeiro de 2017

DOMINGOS AMBONA

 Figuras de cristãos exemplares
por pe. Zé Fumagalli


Demba e Ambona, dois amigos inseparáveis. Juntos começaram a frequentar a pequena escola da missão de Suzana e juntos passaram a se interessar dos dois brancos recém-chegados na aldeia, dois padres missionários . Observavam-nos em tudo o que faziam e diziam. Ambona tinha o nome que fora dum guerreiro, o herói nacional de Suzana, o que na guerra com Sabutule tinha ganho o duelo com Buhâmul, dando à sua gente a vitória que a salvou da destruição.
O nosso Ambona porém não tinha nada a ver com guerras, pelo contrário. Era m tipo calmo, sereno, reflectia muito, não perdia nem sequer uma palavra do padre quando este explicava o catecismo ou quando contava a história de Jesus. Também sabia repetir o que o padre dizia, naturalmente acrescentando os pormenores que julgava oportunos. Era a ele que os colegas recorriam quando esqueciam alguma coisa e ele, seguro, lhes lembrava o que ocorria e raramente falhava nalguma coisa. Era, por assim dizer, o intelectual da companhia. Trabalhador, claro, como seu amigo Demba, mas sabia fazer render o trabalho para encontrar alguma pausa para reflectir. E rezar. Ele não se retraia como o amigo Demba quando se tratava de falar em público, de explicar o catecismo nem que seja a grupos numerosos. O seu falar calmo, contínuo e convicto conseguia te envolver. Às vezes falando em Jesus, de quanto ele dizia e fazia, acompanhava seu discurso com o brilhar dos olhos, com um sorriso apenas acenado, mas que deixava entrever qu ele estava como que contemplando aquilo que dizia. Com certeza gostava daquilo imenso. Era um narrador de categoria um catequista espontâneo, nascera mesmo tal. E era precioso!
Demba avançava e abria caminho, Ambona seguia e prosseguia o trabalho, os dois apaixonados por Jesus e pela "sua" Igreja que estava a nascer. Uma longa caminhada percorrida com o padre Marmugi, como que o pai deles, no meio duma crescente hostilidade por parte dos anciãos da tabanca.
Ambona intuíra que, para seguir a Jesus de perto se devia baptizar, mas o padre ainda não lhes falava de Baptismo... e os anos passavam. O padre tinha razão quando lhe dizia: "A tua moça ainda não ouviu nem uma palavra do catecismo: como podes saber se ela estará de acordo contigo e com tuas escolhas?" A sua moça Jinokorut o nome dela, não sabia nada de Jesus e ele não lhe podia falar dEle. A lei felupe absolutamente não consentia que eles dois se encontrassem a sós: sempre devia haver um adulto com eles. E Ambona não queria que Jinokorut também fosse magoada pela hostilidade e pelas represálias que os anciãos já estavam a exercer contra eles desde que saíram da adolescência e se tornaram jovens com que a tabanca queria poder contar.
O padre lhes dizia que deviam continuar no caminho de suas vidas, construir suas casas, casar: a seguir as coisas se tornariam mais fáceis. Uma vez em casa com Jinokorut, ele lhe podia falar livremente de Jesus sem a presença de pessoas incómodas: já estavam casados e tinham o direito de se frequentarem, de ficarem sozinhos em sua casa. Jinokorut tinha a cabeça rija e, no seu entender, levava até tempo demais a entender o que ele lhe dizia. Mas ele repetia, com paciência, como o padre lhe dizia.
Certo dia, voltou de Bafatá um dos rapazes que os padres tinham enviado ao internato da quela missão para se prepararem a ser ajudantes dos padres, monitores e catequistas, o Adriano, filho do chefe da tabanca de Elia. O padre o encarregou de fazer catequese às famílias de Demba e de Ambona e dos demais colegas em suas próprias casas.
Nasceu o primeiro filho e Ambona pediu ao padre para o baptizar, queria colocá-lo nas mãos de Jesus para que nada lhe acontecesse de mal. Jinokorut estava de acordo. E o pequeno António foi baptizado. Ambona era feliz: Jesus entrara em sua casa! A catequese foi intensificada. Nasceu uma menina e foi chamada Juliana. Também foi baptizada, com as crianças de outros amigos. Os anciãos da tabanca se alarmaram. Já era claro que todo o grupo estava a fugir-lhes das mãos. Era necessário dar-lhes uma lição para impedirem que continuassem. Era uma verdadeira perseguição, e ia intensificando-se com o passar do tempo. Já deviam vigiar suas crianças para impedirem que se lhes fizesse algo de mal: sempre havia venenos em circulação, todos sabiam. Os insultos eram matéria de cada dia. As mulheres da tabanca insultaram suas mulheres. Foram compostos cânticos para zombarem deles e eram cantados também nas outras tabancas em ocasião das festas.
Chegou-se por fim a usar violência. Foi-lhes comunicado que não seriam aceites a participar da próxima iniciação, o fanado; o que queria dizer que eram expulsos da tabanca, já não faziam parte dela. Alguns deles foram espancados e ninguém na tabanca protestou. Então foram amarrados e espancados publicamente.
A este ponto o padre recorreu ao representante do governo, que na altura era ainda português. Nada exigiu contra os anciãos, simplesmente proteção para aquelas jovens famílias que talvez poderiam se transferir para outras tabancas onde podiam estar mais seguros, mas que preferiam ficar na sua tabanca todos juntos, talvez um bocado afastados mas no território, porque queriam abrir um caminho. O representante do governo, tal Ferreira, indicou uma porção de terreno que ficara livre entre a pista de aterragem e a missão católica: pertencia ao Estado: o padre podia tomá-la para lá colocar seus cristãos. Não era a solução melhor, mas como provisória podia funcionar. E aquele grupo e jovens chefes de família aturaram mais um ano de trabalho para construir as novas casas. 
Mas a tabanca não dormia. Eis então a nova ameaça, terrível. "Se vocês forem habitar naquelas casas fora da tabanca, naquele lugar que é maldito, suas crianças irão morrer e não nascerão outras!" Ambona já não sabia mais o que fazer, a prova era tremenda! Via Jinokorut aterrorizada, mas ele também não estava nada tranquilo. Rezava muito, apaixonadamente e pedia:"Jesus, não deixes que as minhas crianças morram. Toma-as tu, se quiseres, mas não deixes que morram!". Pediu com insistência o Baptismo e o padre prometeu que dentro de não muito tempo o receberiam. Esperava a chegada dum padre jovem que os ajudaria a levar para frente a sua Igreja nascente pela qual estavam a suportar tantas provações. A este ponto não faltava mais nada: só entrar nas novas casas. Intensificaram o trabalho e antes do tempo da chuva mudaram para as novas habitações. Mas Jinokorut não aceitava mudar para aquele lugar "maldito": tinha medo pelas suas crianças.
Ambona já não encontrava mais razões para a convencer, erra irremovível. Contou ao padre. O qual recorreu a um estratagema, como ele mesmo me contou. Um belo dia encontrou Jinokorut, a chamou e disse-lhe;" Sabes, Jinokorut, uma mulher da tabanca de Eossor deu-me uma mensagem para Ambona. Mas eu não queria entregá-la sem to dizer. Acho que me compreendes!" Não era nada verdade, mas foi suficiente: Jinokorut juntou todos os seus haveres e no mesmo dia já estava em casa com Ambona! Foi naquela altura que eu cheguei a Suzana e comecei a conhecer estas pessoas, protagonistas de uma história maravilhosa, algo que lembra a epopéia dos Actos dos Apóstolos.
Aponto aqui só alguns episódios interessantes que dizem respeito a Ambona e ajudam a compreender o que se passou. Quando fiz a padre Marmugi a proposta de começarmos a compor cânticos para a liturgia em língua Felup, Ambona, a quem o padre o disse, como de costume não mandou dizer o que pensava e sentenciou:" A nossa língua não presta para cantar na Igreja". Só faltava isso, a coisa quase que virava a desafio. Nasceu o primeiro canto, a rapaziada o aprendeu cedo e o cantava com gosto; veio o segundo, depois o terceiro... e Ambona, solenemente, veio dizer que se tinha enganado. Alguns anos depois do falecimento de padre Marmugi, com o irmão Renato resolvemos preparar a liturgia solene da Semana Santa, dando cumprimento a um desejo que cultivámos com padre Marmugi. Era porém necessário enfrentar um grosso trabalho de traduções e... compor cânticos que, além de serem artísticos, deviam também ajudar as pessoas a rezar acompanhando momentos litúrgicos tão importantes. Lembro que, como primeiro canto preparei os "Impropérios" da sexta Feira Santa: "Meu povo, o que é que eu te fiz de mal, no que é que te magoei? Responde-me!". A meu juízo o canto saiu bem, bonito e intenso. Mas devia ser aprovado pelas pessoas a quem devia servir. Então gravei o canto, mais vezes. Quando toquei o sino para a catequese, liguei o gravador e fui-me embora. Depois de um certo tempo aparece Ambona e diz: "Padre Zé, vem ligar outra vez o gravador: rezei tão bem com aquele canto!" Acertara em cheio a mensagem!
Era um entusiasta, braço direito do padre Marmugi para a catequese nas demais aldeias que se iam apresentando para pedir o "caminho de Deus". Tentou frequentar a escola, mas o ensino estava a um nível tão baixo que não se aprendia nada; aliás a própria frequência não era fácil, atendendo à quantidade de trabalhos que devia fazer. Contudo conseguia fixar a Palavra de Deus com uma facilidade surpreendente e a voltava a propor com fidelidade.
Não há comunidade em que não tenha ido anunciar o Evangelho, a começar pela sua própria casa. Um dia perguntei-lhe se podia participar da oração da noite em sua casa e escolhi a noite dum domingo. Fiquei impressionado por como sabia envolver os filhos na oração (a mais pequena na altura ainda não tinha cinco anos) e por como reconstruiram as leituras da Missa, entre as quais o evangelho fez a parte do leão. E quando se tratou de propor as intenções para a oração do povo, também a mais pequena foi solicitada e, com a ajuda da mãe e do pai, conseguiu safar-se em beleza. Com o volver dos anos, os dois filhos mais velhos, António e Juliana, os que no momento da provação foram oferecidos ao Senhor, Jesus tomou-os a sério: António foi ordenado padre em dois mil, o segundo padre da nossa missão e Juliana se tornou freira, a primeira da nossa missão. Quando se diz : ter fé!
Ambona e Jinokorut continuaram no seu compromisso de servir sua comunidade com o testemunho e com mais ainda. Jinokorut também cimentou-se com o serviço de catequista apesar de ela dar conselhos, mais de que explicar verdades da fé: mas eram conselhos preciosos, brotados duma fé vivida. E dum testemunho.
Juntos ofereciam seu testemunho de casal e de pais cristãos nos demais cursos de formação que se sucediam a Suzana a serviço de toda a diocese. Lembro aquela vez que um grupo de catecúmenos vindos de fora tinha dificuldade em aceitar o matrimónio como indissolúvel, por toda a vida, e fazia um monte de objeções. A certo ponto viro-me para Ambona e Jinokorut e digo: "Vocês queriam responder?". Tinha certeza que sim, porque via-se mesmo que Ambona tinha uma vontade louca de intervir. Arranca na quarta mudança e propõe suas razões. A certo ponto Jinokorut intervêm e diz:" Agora me deixas falar a mim, e continua: Eu dou graças a Jesus porque meu marido me casou na Igreja. Ele sabe que eu nunca o abandonarei, nem que a doença tome conta dele e esta não é uma grande novidade porque muitas minhas colegas não cristãs fazem o mesmo. Mas eu também sei que ele me ama verdadeiramente e nunca me abandonará, nem que por idade o por doença eu vire a farrapo; vira-se para o marido: é verdade, Ambona?"
Nunca esquecerei aquela cena: Ambona que olha para Jinokorut anuindo com a cabeça e o sorriso sereno de Jinokorut, que valia mil catequeses.

terça-feira, 24 de janeiro de 2017

PEQUENAS COMUNIDADES VIVAS



PEQUENAS COMUNIDADES VIVAS na vida da Igreja de Bissau. 
Pequeno itinerário histórico

A caminho do Sínodo diocesano 
Pelo p. José Fumagalli 


1.      A primeira referência à “comunidade viva” aparece desde a primeira tentativa efectuada na Diocese de Bissau (que então abrangia toda a Guiné) de encontrar linhas comuns de pastoral, nem que fosse ainda numa forma “embrional”. Foi um trabalho de pesquisa e preparação que nos empenhou desde 1984, continuou ao longo de ’85 e ’86 e desembocou na “Primeira Assembleia (do Pessoal Missionário)” que foi realizada em Bissau de 4 a 7 de Maio de 1987. Naquela altura, quando se falou em como acolher e acompanhar simpatizantes, pré-catecúmenos e catecúmenos, apareceu-nos como indispensável a necessidade de se formarem comunidades “sólidas e unidas”, comunidades “vivas”, que poderiam ser tais só se nelas houvesse a possibilidade concreta de
se estreitarem laços de conhecimento recíproco, apoio mútuo etc. O questionário que distribuímos tinha como introdução umas citações de documentos da Igreja universal em que se afirmava a necessidade da dimensão comunitária da experiência cristã e, a seguir, a realização concreta das comunidades; a saber Ev. Nuntiandi 23, AG 13; EN 47; LG 9; AG 15, como também OICA 41.
Apresentou-se-nos como praticamente impossível, nomeadamente nas tabancas do interior, a caminhada isolada dum simpatizante para o Catecumenato, os Sacramentos da iniciação e a vivência cristã: para fazer frente às “rupturas” e oposições que se verificam na sua vida concreta neste (da Guiné Bissau) contexto sociocultural, ele necessita do apoio duma comunidade
viva e unida; estas as qualidades que a tornam capaz de oferecer apoio para tal caminhada. Por isso dissemos:
a. Que as comunidades existentes sejam levadas a adquirir tais qualidades (viva e unida), cultivando nos membros uma fé adulta e a consciência de que são eles próprios os meios de transmissão da Palavra de Deus.
b. Que, onde se está no início do trabalho, se enverede desde já por este caminho, cultivando as qualidades humanas que levam um grupo a se tornar comunidade (estima, aceitação recíproca entreajuda), dando atenção aos problemas da própria comunidade e tentando conhecer as famílias dos próprios simpatizantes. (NB: A frase final da alinha b. precisaria duma especificacão: no caso de serem jovens).

2.      A seguir, em 1990, empreendémos um trabalho de revisão da nossa atitude pastoral à luz daquelas primeiras e embrionais ”linhas comuns de pastoral”, concordadas na Assembleia de 1987 e promulgadas em 1988. O trabalho arrancou em 14.04.1990 e levou a uma segunda Assembleia que teve lugar de 17 a 20 de Junho de 1991. Também desta vez ao longo dos questionários distribuídos falou-se em como os agentes pastorais se aplicaram a criar “(pequenas) comunidades vivas” e, no caso, qual foi a utilidade delas quer no processo do acompanhamento dos catecúmenos quer na vivência cristã dos baptizados e na irradiação do Evangelho na sociedade.

A assembleia conclusiva dos trabalhos teve lugar de 17 a 20 de Junho de 1991, quando já chegava às nossas mãos a Redemptoris Missio que no n. 51 fala mesmo nas “comunidades eclesiais de base” como força de evangelização (cfr. também o n. 48 da mesma RM). Foi assim que no “Relatório final” da comissão que conduziu este trabalho, documento que serviu como Instrumentum laboris da Assembleia que se seguiu, no ponto 2 a página 5 encontramos a passagem seguinte que fala em “pequenas comunidades vivas”:

2-Entrando mais no vivo do nosso trabalho missionário, o que nos pareceu polarizar e dar unidade à maioria das propostas e dos "desiderata" é a preocupação de edificarmos comunidades vivas. A afirmação é velha: foi um dos primeiros "postulados" da fase precedente da pesquisa sobre linhas pastorais comuns (cf. LP. II, 1). Mas, através da experiência destes últimos quatro anos, adquiriu ainda mais força pelo facto de vermos agora florescer mais carismas, aparecer mais serviços naquelas que eram então pequeninas comunidades nascentes; o que reforça a consciência comum de estarmos na fase da "plantatio ecclesiae", fase que nos interpela a nós todos:
- os cristãos (ou simplesmente "baptizados") de velha data, para que se dinamizem e
rejuvenesçam;
- os pequenos grupos iniciais ainda em fase de primeiro anúncio ou de primeira evangelização, para que se animem, vendo à sua frente o caminho aberto e experiências a que se podem inspirar;
- os que lidam com comunidades em fase de estruturação e de maturação, para que proporcionem a devida formação e "rodagem" aos portadores de carismas que nelas surgem: Catequistas, in primis, animadores familiares, animadores vocacionais, animadores litúrgicos, responsáveis e operadores das várias actividades educativas, de promoção humana, assistenciais, etc e, por fim, mas não menos importantes, os Responsáveis de Comunidades, cuja formação adequada nos permite a nós, padres, freis e irmãs, recuperarmos, ao lado dum laicado formado, consciente e dinâmico, o nosso lugar específico, respondente ao carisma que nos é proprio, sem "compendiar",
"resumir" ou melhor "apropriarmonos" de carismas que se encontram mais à vontade nos próprios leigos. Mais espaço aparece assim para que surjam e cresçam mais operários para esta vinha, que irão brotando daquilo que representa a célula fundamental da comunidade como da sociedade e o terreno privilegiado de cultivo das vocações até "especiais": a Família Cristã, "lugar particularmente privilegiado para dar a conhecer ao mundo o valor salvador do Evangelho" (J.P. II, Homilia em Bissau, 27.01.90, n.7).

3-Para que estas comunidades vivas apareçam há uma condição indispensável: uma formação gradual e séria, que é o Caminho da iniciação cristã dos adultos, indicado já pelos Padres dos primeiros séculos como "Escola de vida cristã", de maneira particular na sua parte central, que se refere ao Catecumenato; porque é na formação catecumenal que são lançadas as bases do futuro cristão, através duma conversão radical a Cristo e da aceitação da Igreja na sua Missão de salvação. É a preocupação dos Sectores de pastoral e de todas as Missões da Guiné, como se depreende pelas respostas aos questionários de revisão como pelas propostas das Comissões diocesanas mais intimamente ligadas com a acção pastoral.(cfr. anexo 3)”

Depois de realizada a Assembleia, como se disse de 17 a 20 de Junho de 1991, foi emanado um documento que foi publicado no Caminhos Africanos. Nele, além do mais, eram apresentados “Pontos para escolhas de prioridades a curto prazo”.
No ponto 1 falava-se em “formação permanente” de todos os agentes da pastoral. Nos pontos 2 e 3 eis o que se dizia:

“2.Comunidades vivas. Foi reafirmada a necessidade de criarmos comunidades vivas que saibam viver e caminhar como Igreja, proporcionando aos idivíduos a possibilidade de realizar sua caminhada cristã; acha-se necessário que venham também a ser dotadas duma pequena estrutura interna com responsáveis e demais agentes devidamente formados; por isso exige-se:
a) Que se formem catequistas adultos residentes nas comunidades ( LP. A,I,4), com atenção particular à formação permanente sua e dos demais colaboradores, (v.g. catequistas, animadores familiares, animadores vocacionais, animadores litúrgicos, responsáveis e operadores das várias actividades educativas, de promoção humana, assistenciais, etc e, por fim, mas não menos importantes, os Responsáveis de Comunidades); com algo de estrutural que nos proporcione a possibilidade de a realizar (p.ex. catequistado, "escola de teologia" a qual pode ter valor só se tiver um cunho mais aderente à situação, v.g. com formação bíblica, litúrgica e catequética). Nas propostas da CDC vem, a este respeito, a proposta de se preparar um "compêndio de textos para formação dos catequistas".
b) que tenhamos uma atitude de particular discernimento dos carismas que surgem nos elementos das nossas comunidades, de forma a serem garantidos serviços, ministérios e liderança necessários à vida e ao desenvolvimento das Comunidades Cristãs.
c) que se reforce a atenção primária à família cristã como um dos pilares e célula fundamental da comunidade na sua vida e no seu testemunho na sociedade. (cf. João P.II, Omilia, 7, Bissau, 27.1.1990).

3.Iniciação Cristã dos Adultos. A consistência e o futuro das Comunidades, visto estarmos num meio ambiente pagão, em situação de Igreja nascente, depende em grande parte da seriedade com que se realiza o itinerário de Iniciação Cristã dos seus elementos, principalmente adultos. Disso a Igreja nos oferece o ritual e os princípios que o sustentam. Propõe-se:
a) Que a nível dos Sectores e em toda a Diocese se definam linhas comuns sobre a Iniciação Cristã dos Adultos, nomeadamente no que se refere a -linhas mestras para o primeiro anúncio e apresentação dos conteúdos doutrinais
- etapas e aquisição dos requisitos, como também aos sinais correspondentes
- estruturação e adaptação dos ritos propostos pelo OICA.
b) que tal trabalho seja feito a partir das experiências feitas e do material (de carácter linguístico, catequético, litúrgico etc.) recolhido a nível de Missões e de Sectores.”
Em 14 de Setembro de 1995 saiu a Exortação apostólica pós-sinodal “Ecclesia in Africa”, na qual, no n.89 se fala também nas “Comunidades eclesiais vivas” que devem ser “suficientemente pequenas para permitir estreitas relações humanas”.

3.      Assembleia Diocesana de 25 a 28 de Junho de 1996.
Também esta foi precedida por longo estudo dos “lineamenta” a nível de paróquias e comunidades, estudo que deu origem a um longo Documento de trabalho (“Instrumentum laboris”) que recolhe o material organizando-o em 11 Capítulos, o último dos quais intitula-se: “Pequenas comunidades cristãs na Igreja Família de Deus”.
Logo no sumário inicial lê-se o seguinte:
O essencial da vida cristã é viver a fé com autenticidade. A vida cristã é para ser vivida em comunidade. Por várias razões parece ser necessário renovar as paróquias. As pequenas comunidades apresentam-se como um dos processos dessa renovação, uma vez que, pela sua dimensão humana, elas oferecem melhores condições para serem comunidades viva. A paróquia será, então, uma comunidade de comunidades. O texto apresenta algumas das características
das pequenaas comunidades e termina por pôr a questão da mudança de mentalidade e atitudes para se conseguir a adesão à criação de pequenas comunidades”.
Nos números de 456 até 501 é contido o texto do capítulo 11 em que o assunto das pequenas comunidades vivas è tratado pormenorizadamente. No final da própria Assembleia, na conclusão publicada no “Caminhos Africanos” segunda série, ano 8, n° 27 pág 17, fala-se primeiro no Objectivo geral, que è a Igreja como Família de Deus.
A seguir, entre os objectivos específicos, o primeiro assim reza:

a. Pequenas comunidades vivas. A criação e dinamização de pequenas comunidades vivas que fomentem, dentro do estreitamnto de relações humanas mais profundas, uma maior autenticidade
da fé, da partilha, da comunhão eclesial e do anúncio do Evangelho”

4.      Assembleia Diocesana de 2001.
É a que deu origem ao “Projecto diocesano de pastoral”, que retoma os objectivos de 1966 e acrescenta mais dois. No primeiro lugar dos objectivos específicos sempre vem “A criação e dinamização de pequenas comunidades vivas”. A qualificação de “cristás” desapareceu do ditado, mas não do conteúdo: quase que se criou umaa assuefação à linguagem e muitas coisas
ficam sub-entendidas. O risco é que se dê por realizado o que em vez requer atenção e trabalho contínuos. Entre as acções programadas referentes aos objectos específicos, a propósito
do objectivo acima apontado vem o seguinte:

7) Despertar nos leigos a consciência da própria vocação cristã e da sua realização no seio da comunidade, na qual têm um papel a desempenhar e uma responsabilidade a assumir.
8) Promover a criação de ministérios e serviços nas pequenas comunidades como forma de fomentar a co-responsabilidade, a partilhaa, a participação e o crescimento para uma certa autonomia, que manifeste a unidade e a comunhão entre todos os membros.
9) Publicar subsídios sobre o que são pequenas comunidades vivas, seu processo de constituição e sua estruturação”.
NB. Se me é permitida uma observação: o discurso foi em direcção mais estrutural, deixando de lado a urgência missionária e a imprescindibilidade de tais comunidades num contexto de caminho de iniciação cristã. Deu-se por realizado o que realizado não era. Até a alinha 9 quase que não teve seguimento nenhum.

5.      Seminários de formação sobre o Ritual da Iniciação Cristã dos Adultos em vista de concordarmos um “Directório” para a caminhada inicial. Tiveram lugar em 2005-2006. Logo no esboço de Directório do pré-catecumenato vem o texto seguinte que se refere à comunidade viva:
Na fase que precede o Catecumenado, ou seja o Pré-catecumenado, sobressai  necessidade duma “comunidade viva”, presente e activa, onde os cristãos testemunham, “provocam”, acolhem e acompanham os novos membros da comunidade, em harmonia com os responsáveiss, os catequistas, os acompanhadores (fiadur). Por conseguinte, solicitar e encorajar este tipo de actividade por parte dos mebros da comunidade, ajuda a própria comunidade a acordar, a tornar-se mais viva; para que apareça ao recém-chegaado como a sua nova “família” a que vai
pertencer, família que o acolhe, o identifica e o ampara. (R.I.C.A. 41); Vade-Mécum para uma renovação da catequese: da conversão inicial à maturidade na fé 15-16; Linhas comuns de pastoral 1988,III,a,b).”
A este ponto só fica o material da última Assembleia Diocesana de Pastoral, a de 2008, que também considerou como já assumida a opção para a criação de pequenas comunidades cristãs vivas e cujos documentos são de domínio comum. Podemos dizer que entrou a fazer parte do panorama da nossa Igreja, pelo menos quanto a linguagem. Quanto a actuação e consistência.... posteri videbunt.

Não me resta que desejar que esta recolha de documentos tenha alguma utilidade, de maneira especial em vésperas do Sínodo: talvez ofereça pistas e lumes para desvendar um futuro da Igreja "família" onde todos se conhecem, se apreciam e "carregam cada um os pesos dos outros" como diz Paulo aos Gálatas (cf. Gál. 6,2) numa solidariedade que brota do Baptismo recebido e assumido.

Suzana 13.01.2017