O grupo dos seminaristas e dos professores (D. José está no centro) |
No dia 27 de janeiro de 2021 o Seminário Maior Interdiocesano quis comemorar os vinte anos da sua
existência, tendo sido fundado a 13 de outubro de 2001. A data de 27 de janeiro foi escolhida porque altamente simbólica, sendo a data da morte do seu fundador e padroeiro, D. Settimio A. Ferrazzetta, primeiro bispo da Guiné-Bissau. Ele não conseguiu ver a obra acabada (aliás, o seminário está ainda em obras), mas foi o seu principal inspirador e impulsionador.
Naquele dia, portanto, houve uma celebraçao eucarística, presidida pelo bispo emérito D. José Camnate na Bissign e uma palestra subordinada ao tema: "O papel da Igreja da Guiné-Bissau na construção do Homem Guineense". Este tema foi desenvolvido pelo p. Avito J. F. de Araújo, professor de Sagrada Escritura e pároco de Bambadinca.
Vamos publicar de seguida o texto da palestra do p. Avito.
Papel da Igreja da Guiné na formação do Homem guineense
Bom dia, gostaria de iniciar essa conversa saudando os presentes, em particular o Magnifico Reitor Rev. Padre Bernardo António Gomes, quero igualmente saudar o Vice-reitor, O Prefeito dos estudos e o Secretário do Seminário. Quero saudar os docentes que aqui labutam para na formação do Homem guineense. A minha saudação estender-se-á para todos os alunos dos diferentes níveis: ano diaconal, ciclo teológico, ciclo filosófico e ciclo propedêutico.
Ilustres convidados, eu gostaria de agradecer a oportunidade que me deram para falar da minha Igreja, da nossa Igreja, da Igreja de Cristo presente nas terras da Guiné-Bissau. Começo por reconhecer a pobreza do trabalho tendo em conta o factor tempo que pode condicionar grandemente esta minha apresentação (fui apanhado de surpresa e o trabalho da pastoral consome uma boa parte do tempo da minha actividade).
A presente exposição estaria condicionada por três partes para facilitar a sua maior compreensão e abordagem. Na primeira parte procurarei falar do processo da evangelização da Guiné, desde os meados do século XV e marcas de uma nova era a partir da presença dos frades franciscanos portugueses;
Na segunda parte: Dom Settimio A. Ferrazzetta, um marco histórico na promoção do Reinado, Reino e Igreja na Guiné-Bissau; Num terceiro e último momento, analisaríamos juntos: A Igreja da Guiné-Bissau, ao serviço do desenvolvimento.
Introdução: o sinal mais visível da sincera solidariedade da Igreja Universal com toda a família humana tem sido a sua plena participação nas alegrias e esperanças, tristezas e angústias de todos os Homens em todos os tempos independentemente de qualquer tipo de condicionamento. E a Igreja da Guiné-Bissau não pode fugir de regra. O mandato de Jesus Cristo que encontramos no final do Evangelho de Marcos continua ainda a fazer ressoar o seu eco em nossos corações: “Ide pelo mundo inteiro e anunciai a Boa Noticia a toda a humanidade. Quem acreditar e for baptizado, será salvo. Quem não acreditar, será condenado” (Mc. 16,15-16). Apesar deste mandato imperioso da parte de Cristo, ainda muitos Estados modernos se mostraram e se mostram em condições de assumir a tarefa da promoção e do desenvolvimento dos povos, a Igreja nunca perdeu o sentido da sua missão, como acabamos de ilustrar a partir do final de Marcos. Acredito que o esforço da Igreja da Guiné-Bissau tem sido desenvolvido neste sentido. Temos experimentado uma certa frieza dessa nossa humanidade presente na Guiné e somos conscientes dos limites da justiça humana (caso de 7 de Junho, J maior), temos experimentado a frieza das nossas burocracias, nunca devemos deixar de manifestar ao mundo e aos guineenses o grande amor de Deus pelos Homens, através do generoso empenho e criatividade em vários sectores da vida da nossa população. Acreditamos que apesar de muitos esforços, ainda é possível e sobretudo nos nossos dias propor as mesmas aspirações que motivaram o mandato de Jesus Cristo. Comungando ainda e sobretudo nos nossos dias, as mesmas aspirações e sofrimentos do Homem e desejosa de o ver alcançar um pleno e verdadeiro desenvolvimento, ela quer continuar a propor-lhe o que possui como próprio, isto é, uma visão global do Homem e da Humanidade. Após esta breve introdução, creio que agora é possível abordar o primeiro ponto da nossa conferência:
1. O processo da evangelização da Guiné, desde os meados do século XV e marcas de uma nova era a partir da presença dos frades franciscanos portugueses;
Os povos africanos lutaram muito para a própria emancipação e desenvolvimento, contra interesses mesquinhos dos colonizadores. Há uma tradição bem presente nestes períodos intitulados de tradição de resistência contra o domínio colonial na África Negra. É interessante ressaltar aqui o estudo de Peter Karibe Mendy sobre o “Colonialismo Português em África: A tradição de resistência na Guiné-Bissau (1879-1959) ” publicado na edição portuguesa pelo INEP. A um certo momento ele afirma: “convém estabelecer desde já que, através da história, os povos subjugados da África nunca foram passivos. Salienta-se este aspecto para evitar a falsa concepção de que a ocupação estrangeira foi a origem da resistência em África. Os reinos e impérios pré-coloniais, à semelhança dos poderes coloniais e pós-coloniais, apoiavam-se em relações de dominação e exploração”[1]. Essas e demais situações (como por exemplo a exploração) não contribuíram para uma boa evangelização do continente. Variadíssimas vezes o nosso povo não conseguiu distinguir a religião da ocupação, tudo isto com uma certa razão. Era evidente a falta de capacidade em separa a cultura com os actos litúrgicos como nos lembra Mendy: “o desafio do cristianismo africano ao poder colonial europeu manifestou-se na revolta contra o controlo europeu das igrejas e imposição europeia na liturgia”[2]. Tanta mistura da imposição colonial com imposição do evangelho não contribuiu em nada para o avanço das nossas sociedades e igrejas, pelo contrário contribui em empobrecer as nossas sociedades e igrejas. Consequências são ainda visíveis nos nossos dias. Se a igreja segundo mandato de Cristo deveria estar em prol do desenvolvimento da sociedade, isto é, do Homem na sua totalidade, situações similares podem só criar revoltas e resistências. O desígnio de Deus é que a igreja ocupe um lugar central na vida das pessoas, no próprio percurso de fé. A igreja como espaço físico e espiritual é o lugar onde cada um de nós consiga exprimir sua fé sem intimidação, sem perseguição e sem ódio. Caso contrário seremos obrigados a julgar os critérios usados para a propagação do evangelho desde o período da contra reforma como sublinha Charles-Marie Guillet no seu livro “A Igreja, comunidade de testemunhas mergulhadas na história”, onde disse explicitamente: “A igreja de Jesus não deve ser julgada por um critério de êxito terreno ou político; a história dos homens pode só por si manifestar o que é seguir Jesus. Não se trata, sobretudo, de ideias abstractas ou de expressões rituais praticadas de um modo regular. Trata-se, antes de mais, de uma prática viva, de gestos de amor e fidelidade”[3]. São situações que vão marcar profundamente o período da contra reforma nos séculos XV até ao século XVII. Uma posição de reviravolta, de apresentar em traços gerais o chamado “cristandade verdadeira”.
A)- O período da contra reforma e a evangelização da Guiné
Os franciscanos Espanhóis[4] e portugueses marcaram a própria presença no nosso território desde os meados do século XV. Uma presença que compreendia toda a costa ocidental de África até Serra-Leoa, nos períodos de 1470. Esta presença massiva em territórios africanos é marcada por um grande impulso missionário, por um bom clima político (muitos reis praticavam o cristianismo), por um bom ambiente espiritual. Nasceram na altura várias congregações e institutos com carisma missionaria. Pensemos no caso da reforma carmelitana, o nascimento da companhia de Jesus, surgimento de muitas escolas francesas de espiritualidade, como nos conta Charles-Marie Guillet[5]. Muito antes deste período histórico, a ideia é que o mundo como espaço geográfico era limitado. Com as descobertas perceberam que existe “mais mundos”, e que era necessário evangeliza-los, pô-los num bom caminho, numa boa civilização. Estamos em 1492 e houve um grande impulso missionário sobretudo com os Jesuítas na expansão do discurso final de Jesus em Marcos “Ide”. Para Charles-Marie Guillet “é portanto uma igreja clerical e praticamente latina que é transportada para todo o mundo. E tudo isto em clima de colonização (espanhola e portuguesa depois, francesa…) que assenta no prestígio e na força do dinheiro. Estamos longe da situação das primeiras testemunhas após o Pentecostes”[6]. A partir destas e de mais constatações compreende-se o porquê da grande falha para uma boa penetração do evangelho em vários continentes, em particular na África ocidental, e em concreto no território da então Guiné. Houve muita tentativa da parte de Roma, através do Papa Bento XIV (1659), em travar através de decretos varias tentativas do desprezo de culturas africanas, e demais usos e costumes locais. Disse ele umas frases que considero monumentais para a nossa partilha de hoje, que passo a citar para as gerações vindouras “Não vale a pena gastar argumentos a tentar convencer estes povos a mudar os seus ritos e costumes… a não ser que não sejam contra a moral ou a religião. Que há de mais absurdo que transplantar para o meio dos Chineses a França ou a Espanha…”[7]. São interpretações que devemos tomar em consideração porque manifestam o verdadeiro desejo da Igreja em ir ao encontro de culturas e povos, e de respeitá-los na própria terra. Caso contrário em vez de conseguirmos avanços só serão criadas condições para choques de culturas, de usos e costumes locais. Jesus durante o tempo que viveu na terra procurou conhecer e compreender a cultura do seu tempo, do seu povo, para depois apresentar propostas concretas da parte de Deus.
O território da então Guiné não fugiu a esta regra de “table rase”, para a imposição da cultura ocidental, de um certo tipo de cristianismo forçado ao bem dos interesses alheios e mesquinhos. Toda essa situação que acabamos de mencionar não teve sucesso, mas sim insucesso motivado por vários factores que aqui vamos mencionar citando o nosso conterrâneo Jacinto Baliu Sinbandio na sua tese de licenciatura em Teologia pela Universidade Católica Portuguesa. A um certo momento citando o grande historiador Henrique P. Rema, disse: “o mortífero clima da zona Guineense, que exigia cuidados ignorados dos primeiros europeus que tentaram fixar-se naquelas paragens; o isolamento em que viviam os missionários, faltos de víveres, de recursos de toda a espécie e em terrenos pobres; o islamismo, que procurava dificultar a nossa primeira penetração política, comercial e, sobretudo, religiosa; a antipatia e até a hostilidade do indígena para com o europeu, em razão da escravatura incipiente efetuada pelos brancos e a dificuldade de penetrar nas terras do selvagem e inóspito indígena feiticista, que se manteve hostil, em geral, até nossos dias”[8]. Toda essa situação será resolvida com a criação de uma Diocese que ocupasse de mais perto a situação dos povos da Guiné. É a Bula Pro Excellenti do Papa Leão X, quem em 31 de Janeiro de 1533, vai criar a Diocese da Guiné e Cabo Verde. A finalidade principal é motivada por uma presença mais efectiva do que antes, e de um contacto mais directo com a população. Apesar de todas essas providências, não houve um andamento dessa presença, a quem diz que o território ficou praticamente esquecido no campo da evangelização. Toda esta situação durou um pouco mais de um século para depois se mudar da estratégia de evangelização, isto é, converter a elite para depois conseguir converter a massa. Tudo isto só vai contribuir para fragilizar o mandato de Cristo e fragilizar a missão da Igreja nos territórios da Guiné.
Todo este problema acima mencionado e demais problemas que aqui não mencionamos por uma questão do tempo, será resolvido só com um grande empenho da Santa Sé em solicitar da parte portuguesa, isto é, da Província Franciscana Portuguesa mais missionários para território da Guiné. Porque mesmo com a tentativa do clero secular não houve um bom êxito no processo da evangelização (basta pensarmos no caso do padre Marcelino Marques de Barros, nativos da Guiné). Esse grupo constituído pelos frades e que tinha como superior o Padre Pedro Araújo[9], e com a presença de Irmãs Franciscanas Hospitaleiras houve mais um passo no processo da evangelização, referimos mais praticamente aos anos de 1932-33.
2. Dom Settimio A. Ferrazzetta, um marco histórico na promoção do Reinado, Reino e Igreja na Guiné-Bissau;
Num clima destes compreende-se facilmente o impacto (pacto) do papel desempenhado pelo Bispo D. Settimio no processo da Evangelização da Guiné-Bissau livre de pressão colonial, mas ainda sob o jugo da nova colonização com o partido único.
Houve uma grande pressão da parte da Santa Sé em relação ao Governo português para que abrisse a porta da Guiné para novos missionários. O desejo firme da Igreja mãe era de dar maior impulso a evangelização nas terras firmes da Guiné, o que não foi o caso com a presença dos Frades Franciscanos Portugueses. Foi assinada uma concordata entre a Santa Sé e a Província eclesiástica da Ultramar com a Bula Sollemnibus conventionibus[10], datada em 4 de Setembro de 1940. Esperava-se uma nova missão, isto é, uma missão no próprio território, ou seja em outras palavras uma separação com a Diocese de Cabo Verde. De facto o futuro Bispo de Bissau veio no quadro desta concordata assinada entre a entidade da Santa Sé com o governo português. O acordo permitiu uma certa aproximação sobretudo na entrega de escolas e postos sanitários controlados pela autoridade portuguesa, e finalmente entregues nas mãos dos missionários. A Guiné ganha mais um título nos olhos da Igreja Universal, isto é, passa a ser apelidada de Prefeitura Apostólica com o empenho da Sagrada Congregação dos Negócios Eclesiásticos. É de agradecer profundamente o grande empenho do Papa Pio XII[11]. Houve uma grande presença com essa abertura, sobretudo com a presença dos Missionários do PIME, da Província Franciscana Portuguesa.
Acreditamos que é dentro deste quadro que Dom Settimio foi escolhido para dar a continuidade a obra de Jesus proclamada no final de Marcos 16. Ele foi um excelente missionário do Reinado, do Reino e da Igreja. Para nós o REINADO significaria o ato pelo qual Deus salva o seu povo da escravidão, da exploração e da miséria. De facto a Guiné vivia na exploração, na miséria e no sofrimento. Foi um verdadeiro revolucionário no verdadeiro sentido da palavra. São Paulo nos recorda na sua bela carta aos Efésios 2, 4: “Mas Deus, que é rico em misericórdia, pelo grande amor com que nos amou, deu-nos a vida juntamente com Cristo…”. Deus veio ao nosso encontro na pessoa de Dom Settimio.
a)-Um Seminário Maior também na Guiné-Bissau (2001)
Poderia estar aqui a relatar muitas actividades desenvolvidas por Dom Settimio, enquanto Bispo de Bissau, na altura de uma única Diocese. Prefiro concentrar-me de modo particular do seu sonho em ver um seminário maior também na Guiné-Bissau.
A história do Ocidente é marcada profundamente pelo interesse da Igreja na educação do Homem. Para a Igreja educar significa formar o homem e a mulher na sua integridade, isto é, nos vertentes: intelectual, física, moral e religiosa. Podemos encontrar essa preocupação compendiada na declaração “Gravissimum Educationis” do Concílio Vaticano II, que é para nós a carta magna da orientação e actuação da Igreja no campo do saber para o bem da sociedade. No seu número 1 é afirmado: “Todos os homens, de qualquer estirpe, condição e idade, visto gozarem da dignidade de pessoa, têm direito inalienável a uma educação correspondente ao próprio fim, acomodada à própria índole, sexo, cultura, e tradições pátrias, e, ao mesmo tempo, aberta ao consórcio fraterno com os outros povos para favorecer a verdadeira unidade e paz. A verdadeira educação, porém, pretende a formação da pessoa em ordem ao seu fim último e, ao mesmo tempo, ao bem das sociedades de que o homem é o membro e em cujas responsabilidades, uma vez adulto, tomará parte”. Este sim foi uma ideia concretiza por Dom Settimio. Um sonho de tornar real a presença da Igreja nas terras da Guiné significaria para ele entre outras coisas uma certa separação com o Senegal, onde iam os nossos irmãos mais velhos. Primeiro porque uma formação no próprio País proporcionaria uma melhor compreensão das situações conjugadas com elementos de teologia e filosofia. Um conhecimento mais aprofundado das nossas realidades a partir da experiencia de outros missionários; segundo, na perspectivada Maximum Illud no seu número 38 acredita que uma igreja madura é aquela que tem homens e mulheres preparadas e que se entregam totalmente ao seu serviço dos seus conterrâneos. Sacerdotes e Bispos locais é um termómetro eficaz para medir o avanço de uma igreja local[12]. Muito embora, como alguém chegou em me confidenciar na altura da idealização deste projecto houve vozes discordantes, como também nós que somos pioneiros desta casa não concordávamos na altura com a ideia de deixar Dakar, capital do Senegal e regressar a casa para iniciar um novo caminho. Não quero aqui fazer um juízo e valor, cabe o tempo julgar nossas posições e boas vontades. Seja como for, qualquer posição contra estaria a ir contra aquilo que é a vontade da Igreja Universal expressa no número 36 do documento ora citado: “Onde, então, existir uma quantidade suficiente de clero nativo bem instruído e digno da sua santa vocação, aí a Igreja poderá dizer-se bem fundada, e a obra do missionário realizada. E se se levantasse o inimigo da perseguição para abater aquela Igreja, não se precisaria temer que, com aquela base e com aquelas raízes tão fortes, ela não sucumbiria aos assaltos do inimigo”[13]. Hoje mais de nunca somos convidados a trabalhar para lutar tanto contra o inimigo externo como contra o inimigo interno. O inimigo externo são as várias visões políticas que querem acabrunhar a igreja de Cristo presente na Guiné-Bissau; como é óbvio que o inimigo interno são as nossas preguiças mentais, a falta de vontade de estudar, de empenhar, como igualmente o pouco interesse em produzir contribuições para o Seminário Maior. Será que nos a contentamos só com a dissertação do fim de estudos? Qual seria hoje para nós a melhor forma de render uma justa homenagem ao Dom Settimio neste lugar? Qual deveria ser a contribuição dos nossos leigos para o crescimento deste lugar de grande utilidade? Não seria já o tempo para uma escola de teologia para os nossos leigos? O Seminário Maior Interdiocesano não seria um espaço ideal para este propósito? Creio que respondendo e pondo em práticas essas minhas evidências estaríamos a completar a segunda parte do sonho de Dom Settimio, isto é, um Seminário Maior na Guiné-Bissau.
3. A Igreja da Guiné-Bissau, ao serviço do desenvolvimento.
Porque é que a Igreja se interessa pelo desenvolvimento? Qual seria a vocação primordial do Homem num País como o nosso? Que tipo de desenvolvimento almeja a Guiné-Bissau? E por fim como participa a Igreja no desenvolvimento? São pelo menos algumas interrogações que podem contribuir para uma maior clarificação do argumento em debate aqui hoje neste prestigioso espaço académico como era a academia de Platão por volta dos anos 387 a.C.
A solicitude da Igreja por todos os aspectos da existência humana é um facto que acompanha a sua missão ao longo dos séculos. Com a vinda do Espírito Santo ela, continuando a missão do Senhor recebida no evangelho de Marcos 16,15-16, com o verbo no imperativo “IDE”, a Igreja assumiu o grande trabalho de evangelizar, isto é, de anunciar dias melhores para a humanidade. Esta proclamação consiste em afirmar que Jesus Cristo é o Homem Novo no qual e com o qual todos os homens devem renascer e se renovar.
Sendo assim, a sua principal missão será necessariamente a sua acção em prol da justiça e na promoção do Homem. A nível de relação não se pode separar na evangelização as ideias da promoção humana com o do desenvolvimento como sinais visíveis e profundos a nível antropológico, teológico e de valores morais. Já o Papa Paulo VI fazia esta afirmação no na sua exortação Apostólica Evangelli Nuntiandi, nº 31. A implicação da Igreja na vida social do seu povo são ilações concretas do próprio mandato de Cristo.
a) Que tipo de desenvolvimento almeja a Guiné-Bissau?
Logo após a independência pensava-se que tudo seria fácil e se esperava que de Boé viesse tudo. Infelizmente não foi o caso. O homem é um corpo que necessita de viver e de alimentar-se, ele também tem um coração que é capaz de pensar, de aprender e de emitir juízos sobre si e sobre os outros. Portanto o desenvolvimento é algo inato ao homem, é inseparável ao homem. Não se pode limitar a ideia do desenvolvimento só num aspecto, neste caso no aspecto económico. Para o Papa Paulo VI, na sua Encíclica sobre o desenvolvimento humano disse no número 14 o seguinte: “o desenvolvimento não se reduz ao simples crescimento económico. Para ser autêntico, ele deve ser integral, isto é, promover todo o homem e o homem todo”[14]. Se queremos atingir esse desenvolvimento integral – o Homem na sua totalidade- do nosso corpo, do nosso espírito e do nosso coração, é preciso que procuremos juntos assegurar a pessoa humana uma vida decente, uma vida digna, condições básicas para uma boa sobrevivência. É deste tipo de desenvolvimento, no caso concreto da Guiné-Bissau, que a igreja guineense tem uma missão e responsabilidade de participar e contribuir. Daí não limitaríamos a nossa intervenção só em estruturas, como por exemplo em construções de escolas, jardins, hospitais, centros de recuperação nutricional, orfanato etc.., mas sim trabalhar na formação do coração do Homem. Aquele confidenciou uma vez que Dom Settimio se sentiu chocado com a guerra de 7 de Junho de 1998, porque segundo ele a igreja da Guiné-Bissau investiu muito em construções de estruturas, mas falhou na “construção” do coração do Homem. É nossa responsabilidade hoje e mais do que nunca reflectirmos bem, se estamos num bom caminho ou não.
Desta constatação deduz-se o seguinte: como participa a igreja da Guiné no desenvolvimento?
A Igreja é Jesus Cristo e aqui representada por uma porção do povo de Deus que até 2010 éramos 17,6 porcento da população. No entanto apesar destes dados isto não deixa constituir uma força espiritual e que tem como missão primordial difundir a mensagem de Cristo entre os Homens. Jesus no seu encontro com os discípulos de João Baptista no evangelho de Mateus disse: “Ide contar a João o que ouvis e vedes: os cegos recuperam a vista, os coxos andam, os leprosos são purificados e os surdos ouvem, os mortos ressuscitam e os pobres são evangelizados” (Mt. 11,4-5)[15]. Esta é a missão que a igreja da Guiné-Bissau recebeu de Cristo e deve continuá-la no tempo e no espaço, a tempo e a contra tempo. Daí podíamos ressaltar dois aspectos fundamentais:
1º Somos convidados a estarmos ao lado dos sofrimentos dos homens, das mulheres, das crianças;
Desde os inícios da criação da diocese de Bissau e também da diocese de Bafatá, a igreja está sempre ao lado dos sofrimentos e miserais dos homens para ajuda-los a aliviar as suas dores. Tem mobilizado todo o tipo de apoio para lutar contra a ignorância e a doença. Numa palavra, a igreja da Guiné praticou aquilo que nós chamaríamos de “política de assistência”, que não se deve confundir com o assistencialismo. Era urgente e ainda hoje é urgente ir ao encontro da nossa população, sobretudo dos mais carenciados;
2º Somos interpelados a proclamar a Boa Nova, isto é, a anunciar o advento do Reino da libertação dos Homens;
A nossa missão não se limita só em socorrer os necessitados mas também em anunciar a Boa Nova aos pobres. Quem são os pobres da nossa sociedade? Acreditamos que os Pobres são todos os Homens que por uma outra razão em que vivem, são limitados dos seus direitos fundamentais, não podem continuar a viver daquela forma. Pobres são os explorados pela injustiça do nosso país, são privados dos bens essenciais e vivem à margem da sociedade. No entanto na compreensão evangélica os piores pobres são os que vivem como escravos do próprio egoísmo, da própria riqueza, e pelos bens deste mundo.
Se tudo isto for verdade, creio que a nossa contribuição e atitude será aquela de serviço, a igreja por sua natureza é serva. Temos como missão de ajudar o Homem a poder desenvolver-se ele mesmo, é esta a tarefa no âmbito do desenvolvimento da igreja.
À guisa de conclusão desta apresentação e não desta discussão gostaria aqui de apresentar algumas fotografias do nosso país. A Guiné-Bissau é um dos países mais desprovidos do mundo. Alguém disse que aqui vive-se de luxo no lixo. Além de sofrer uma longa e persistente instabilidade político-social, os recursos que tem ainda não estão a ser explorados para o bem da população. Daí toda a consequência da sua incapacidade em desenvolver uma economia do mercado mesmo reduzida e suportando o seu orçamento geral de Estado. Apesar do orçamento geral do Estado para 2021ser aprovado pelos deputados em 16 de Dezembro de 2020, e que ronda os 253 mil milhões de francos cfa, não há nenhuma previsão para investimentos. Muita pena e muito triste.
É um país jovem e cheio de muitas esperanças, consciente de tudo quanto pode ser empreendido para o seu rápido desenvolvimento, desejoso de gozar as novidades das novas tecnologias e tendo toda a capacidade cultural e intelectual para assumir o seu próprio destino, mas por ouro lado, forçado por estratégias politicas mesquinhas a empreender outros rumos que o limitam em relação aos países vizinhos. É um país que quer trilhar uma via nova, mas onde, é difícil ainda promover a iniciativa pessoal ou colectiva e a participação, onde portanto ainda é difícil alguém tornar-se artífice e responsável do seu próprio desenvolvimento.
É de reconhecer os esforços humanos da igreja, dos investimentos económicos levados a cabo com ajudas de parceiros bilaterais como multilaterais, aquilo que falta é a organização interna na busca da autonomia financeira, na procura de uma identidade cultural própria, tudo isto vai contribuindo para a aquisição de uma fisionomia diferente.
Eu gostaria de fechar mesmo contando um história que li algures. Consultaram o fundador de Dubai, Sheikh Rashid, sobre o futuro do seu país, e este respondeu: “Meu avô andava de camelo, meu pai andava de camelo, eu ando na Mercedes, meu filho anda de Land Rover, e o meu neto vai andar de Land Rover, mas o meu bisneto vai tocar-lhe de novo camelo…”.
Por quê? “Tempos difíceis criam homens fortes, homens fortes criam tempos fáceis. Tempos fáceis criam homens fracos, homens fracos criam tempos difíceis”. Muitos não vão entender mas é preciso criar guerreiros, não parasitas.
Pe. Avito José Fernandes De Araújo
[1] Cf. Peter Karibe Mendy, Colonialismo Português em África: A tradição de resistência na Guiné-Bissau (1879-1959), Imprensa Nacional-Casa da Moeda, E.P.-Lisboa, 1994, 37.
[2] Ibidem, p. 62.
[3] Cf. Charles-Marie Guillet, A Igreja, comunidade de testemunhas mergulhadas na história, edições paulistas, 1988, p.6.
[4] Pode-se conferir aqui um grande trabalho de um guineense Jacinto Baliu Sibandio, publicado pela Universidade Católica Portuguesa, Faculdade de Teologia, Porto, 2017. Interessa-nos bastante o capítulo dois da sua tese de licenciatura em Teologia.
[5] Cf. Charles-Marie Guillet, A Igreja, comunidade de testemunhas mergulhadas na história, edições paulistas, 1988, p.54.
[6] Ibidem, p. 55.
[7] Ibidem, p. 55.
[8] Cf. Jacinto Baliu Sibandio, D. Settimio Arturo Ferrazzetta (1924-1999): O contributo da missão católica para o desenvolvimento da Guiné-Bissau, Porto, 2017, pp.16-17.
[9] Ibidem, p.24.
[10] Ibidem, p. 39.
[11] Cf. Jacinto Baliu Sibandio, D. Settimio Arturo Ferrazzetta (1924-1999): O contributo da missão católica para o desenvolvimento da Guiné-Bissau, Porto, 2017, p. 40.
[12] “E, não obstante isto, existem ainda, infelizmente, regiões em que, embora a fé católica tenha ali sido implantada há séculos, não se encontra aqui mais que um clero nativo de qualidade muito inferior. Igualmente existem muitos povos, que embora tenham alcançado um alto grau de civilização de modo a poder apresentar homens notáveis em todo ramo da indústria e da ciência, e, todavia, embora há séculos sob a influência do Evangelho e da Igreja, ainda não puderem ter bispos próprios que governassem, nem sacerdotes tão influentes para guiar os seus compatriotas…” E ainda o número 39 contínua: “Para superar, por isso, um tal inconveniente, queremos que a Sagrada Congregação para a Propaganda da Fé tome, como acreditará oportuno, medidas e disposições adaptadas para as várias regiões, se do interesse da fundação e do bom andamento dos Seminários, seja regionais ou interdiocesanos; e vigie de modo particular a formação do clero em cada Vicariato e nas diversas missões”. Cf. Maximum Illud, nn. 38 e 39, Carta Apostólica Do Sumo Pontífice Bento XVI, sobre a actividade desenvolvida pelos missionários no mundo, Edições CNNB, 1ª Ed., 2018, pp.17-18.
[13] Cf. Ibidem, nº 36, p. 17.
[14] Cf. Carta Encíclica Populorum Progressio, Paulo VI, Edições Paulinas, nº 14, 1967.
[15] Cf. Bíblia de Jerusalém, 11ª reimpressão, Paulus, 2016.