sexta-feira, 16 de setembro de 2016

Figuras significativas de cristãos guineenses: Luís DEMBA



A caminho do Sínodo

É mesmo consolador ver e constatar que o Espírito Santo, o grande Protagonista da Evangelização, trabalha e como! também nesta nossa igreja de Guiné Bissau. Nós traçamos planos, discutimos, às vezes parece-nos estar sempre no começo, por exemplo no Primeiro Anúncio e não conseguimos enxergar muito além... Ele tranquilo, soberano, trabalha silencioso nos corações e... consegue resultados que nos deixam sem palavras! Em 1994, a caminho da primeira assembleia para a África do Sínodo dos Bispos, foi-me pedido, pela redação da revista "Mondo e Missione" do PIME de descrever umas figuras de cristãos africanos significativos, com a condição que fossem pessoas que eu tinha conhecido pessoalmente, se é que havia. Abri os olhos e... percebi que não eram poucas... O resultado è uma pequena "Galeria de retratos" que testemunha o trabalho do Espírito Santo e ... nos encoraja a trabalhar.  
Figuras significativas de cristãos guineenses: 

Luís DEMBA

Queria falar numa grande bênção que Deus largou nesta nossa Igreja de Suzana e faço-o na altura em que Ele aparentemente a retirou: queria falar de Demba e faço-o em ocasião da sua morte: 28.08.81, memória de s. Agostinho bispo de Hipona (Bona, na atual Argélia).
Demba foi um dos primeiros discípulos de Padre Spartaco Marmugi, PIME. Era um rapaz alegre, dinâmico, ativo. Nunca parava, graças também a uma força física notável. E a uma vontade de ferro! Quando o padre explicou que embriagar-se è uma coisa negativa, até é pecado, Demba tirou suas conclusões: não me lembro e o ter visto uma vez bêbado ou quase bêbado. O que, neste meio em que o vinho de palma è "moeda corrente", quer dizer "ser uma mosca branca". E tal era mesmo, uma autêntica mosca branca. Escutai esta.
Demba e Madalena estavam casados desde não muito tempo e via-se mesmo que Madalena esperava o primeiro filho. O padre dizia que numa família deve haver entreajuda, sem ficar a considerar se um trabalho è de homem ou de mulher, como por exemplo carregar na cabeça a lenha para o lume. O problema é que se alguém não respeita a repartição dos trabalhos e o homem passa a fazer trabalho de mulher, todo o mundo vai fazer troça dele, até compõem canções para zombarem dele. Um belo dia, ao entardecer, lá aparece o Demba assobiando, com seu feixe de lenha na cabeça, vem do mato e com seu passo apressado dirige-se à sua casa. Um coro de gargalhadas saúda seu aparecimento seguido de apreciações sarcásticas e zombarias várias. Demba estaca, vira a cabeça (e o feixe de lenha) para olhar para as caras dos zombadores e diz: " Minha mulher está fazendo nosso primeiro filho e eu ajudo-a. Assim é que disse o padre!" E ninguém se atreveu a continuar com as zombarias.
Desta forma é que ele ensinava o que por sua vez aprendia: não com palavras, mas com ações, Ele queria ser catequista como seu amigo Ambona, mas ele não conseguia fazer belos discursos. Dizia ele: "Quando devo falar em público, diante de muitas pessoas, para explicar algo, não encontro as palavras, começo a transpirar e a fazer confusões. Mas se alguém se atrevia a contestar suas escolhas, nomeadamente o facto de rever todo seu comportamento para o adequar dia a dia com a escolha fundamental de seguir a Cristo conforme o que o padre vinha explicando, então ninguém conseguia mandá-lo parar: era o primeiro a responder e não lhe faltavam palavras, pelo contrário: uma metralhadora mesmo a valer! Até que o povo em geral, quando queria se referir ao grupo dos discípulos de padre Marmugi, chama-se "Dembaì", quer dizer "os de Demba". O que quer dizer ser líder!...

Aprendeu a trabalhar como pedreiro. Melhor, assim è que ele dizia: vontade de aprender não fazia mesmo falta apesar de os resultados não serem sempre ótimos. Até comprou ferramenta para isso: colher, prumo e mais ainda. Mas a fita métrica.. era mesmo um problema com todos aqueles números tão pequenos e quase todos parecidos.... E então... lá ia " a braços". Lembro que uma vez lhe observei que uma parede, ainda muito baixa, que estava a levantar não estava bem aprumada. A resposta veio logo direta: "Cala-te, tu não sabes nada deste trabalho": Era o feitio dele. Fui a procura duma colher, dum prumo e de quanto servia e comecei a levantar a parede correspondente, virando-lhe as costas. De vez em quando ele se virava para observar o que eu fazia e reparou logo que eu procedia mais rápido do que ele e a parede subia bem aprumadinha. Ele não sabia que durante a longa estadia em Portugal à espera de vir à Guiné eu também trabalhara como pedreiro. Depois de o ter ultrapassado, arrumei a ferramenta dizendo que devia seguir para outra tabanca onde tinha um encontro de catequese. Demba olha para mim, baixa a cabeça e diz: "Por favor podes dizer-me como é que vou endireitar a minha parede?". E aprendeu.

Mas o problema dele era outro; os que passavam na rua. Vendo Demba trabalhar, não deixavam de o provocar, ou a ele diretamente ou com alusões a seus companheiros "da missão". Ele agora não era tipo que "mandasse dizer" depois de certo tempo: não, a resposta vinha direta, certinha, sem rodeios. Mas no entanto o tempo passava, o trabalho não adiantava e ele mesmo se dava conta que assim não podia ser. Um belo dia, depois do sol-posto, chego a Katon, onde estamos construindo uma capela e Demba faz parte da equipa de pedreiros. Já escureceu, são oito horas da noite. Paro a motorizada e... vejo Demba ainda a trabalhar: está colocando grelhas numa janela, um trabalho que já devia estar concluído. Pergunto: "Demba, como é que ainda estás a trabalhar? Já são oito horas da noite, já não consegues ver bem o que fazes!". A resposta: "É a terceira vez que volto a efazer esta janela! A gente que passa por aí faz-me perguntas e eu respondo, digo-lhes de Jesus. Desta forma distraí-me e enganei-me em colocar as grelhas. Bem sei que este trabalho devia ser acabado antes desta noite, assim continuei a trabalhar também quando os meus colegas largaram. Agora o trabalho está bem acabado, mas estas horas de trabalho a mais tu não mas deves pagar".

Na tabanca de Jihunk, quase na boca do Rio Cacheu, estava a nascer novo grupo de simpatizantes. Logo dois anciãos de Buhlol (Bolor) vão ter com eles para os "catequisar": Peguem mesmo atrás do homem branco, o padre, mas não deixem nada das nossas cerimónias e das nossas tradições. Nós os dois fomos batizados em Cacheu, mas continuamos sacerdotes dos nossos irans! Assim é que é: Felupes até amanhã!". Os simpatizantes me informam e eu digo que esperem a resposta. Uma vez a Suzana, como é costume, coloco o problema na comunidade. Logo no fim da catequese Demba reúne com uns amigos e a seguir vem ter comigo: "Somos quatro, amanhã vamos a Jihunk tratar do assunto. Fica descansado." Depois de dois dias regressam: "Está tudo arrumado, quer com a comunidade quer com os dois amigos!" 

De repente, com apenas quarenta anos de idade, Demba adoece. Primeiro diagnostico médico: "Hipertensão intra-crânica: é provável que haja um tumor na cabeça". Caiu-nos o mundo em cima. Na prática era uma condenação à morte. Custou aceitar, eu próprio não queria: tentámos fazer algo na Guiné, no Senegal. Nada, piorava dia após dia, uma autêntica devastação! No mês de Fevereiro ainda consegue participar dum curso de formação de catequistas e animadores. Lá vem ele, apoiando-se a um pau e sustentado por Madalena, a sua esposa, ela também catequista, que não o deixa um instante. Ainda consegue trazer seu testemunho, discutir, animar, apontar caminhos.
 

Depois de poucas semanas as forças o abandonam. Fica na cama: não se levantará jamais. Nenhuma rebelião diante da perspetiva da morte que já não irá tardar. Fatalismo? Não, apesar de esta parecer a interpretação mais certa neste universo cultural. Para o mês de Maio programamos outro curso mais breve para catequistas e animadores que vai coincidir com a visita do Senhor Bispo o qual entregará o "mandato" aos catequistas mais experientes. Vou ver o Demba e digo-lhe; "Demba, o Bispo vai entregar o mandato também a ti". Olha para mim: "Como posso ser catequista sem dar catequese? Como posso ir ter com as pessoas para lhes explicar o catecismo? Bem queria eu! Mas desta cama já não me vou poder levantar!" "Ouve lá, digo-lhe eu, nós precisamos que tu nos expliques a "lição" mais difícil do catecismo, a saber: como é que um cristão assume sua doença, não como um castigo, mas sim como uma chamada a oferecer seu sofrimento a Jesus, a sofrer juntamente com Ele. Deus confiou-te a ti esta "lição", a da Cruz e só tu no-las podes explicar. Achas que podes dizer-lhe que sim, aceitas de o fazer?". Olha para mim. Não responde. Acrescento: "Demba, tu sabes que o Espírito de Deus dá a cada um de nós uma missão para cumprir na sua Igreja e a ti confiou muitas delas: tu és um dos fundadores desta nossa Igreja de Suzana, juntamente com Padre Marmugi guiaste muitos teus irmãos no caminho de Jesus. Hoje Deus está a pedir-te o que pediu a seu Filho Jesus: a Cruz. Demba, é o serviço mais difícil, mas se Deus to confiou, quer dizer que também te dá sua força para o cumprires. E a nossa Igreja precisa mesmo deste teu serviço. Demba, não é um castigo que Deus te dá, mas sim uma missão que te confia!" Fecha os olhos. Reabre-os, olha para mim e faz sinal que sim, aceita, os olhos cheios de lágrimas. Agradeço-lhe. Rezamos um pouco juntos. Levanto e saio daquela casa. Em lágrimas: já não aguentava mais. Mas o coração cantava: Deus nos visitou! 

Quando o Bispo Setímio deu o mandato aos catequistas, Madalena o recebeu também por conta do marido diante da comunidade. E fomos entregá-lo. Era o 24 de Maio. Durante três meses e quatro dias Demba continuou a nos ensinar como sofrer juntamente com Jesus, até que Deus a 28 de Agosto de 81, o chamou para lhe dar a ele também sua recompensa (Mt. 20,20), assim com tinha chamado seu Mestre, o Padre Spartaco Marmugi a 28 de Dezembro de 73. Eu estava em Bissau na altura, dirigindo um curso diocesano de formação para catequistas. O meu confrade p. Gigi ao alvorecer veio de Suzana para mo comunicar, mas ficou bloqueado à jangada de João Landim. Conseguiu mandar-me um recado que recebi a meio dia durante a Missa de encerramento do curso. Dei a notícia, rezámos por Demba e logo depois de acabada a Missa peguei na mota, passei o rio com a mota numa canoa, continuei para Suzana, pedindo à mota tudo o que podia dar e cheguei a tempo para fazer o enterro antes de anoitecer.
 

Presentes todos os cristãos. E nem só eles! Madalena ficara junto ao marido durante os últimos meses, sem interrupção, reclusa dia e noite para o assistir. Outra lição de dedicação que está a deixar rastos. E a família? Os cristãos se mexeram: os homens foram lavrar sua bolanha, as mulheres transplantaram nela o arroz, a chuva acompanhou bem e parece que queria continuar. Se Deus quiser, eles também terão sua porção de arroz. Como me disse irmã Maria, num dos primeiros dias depois da morte de Demba, entrou na igreja e viu Madalena ajoelhada, rodeada pelos quatro filhos mais novos. Chorava. Rafaela, pouco mais de três anos diz: "Mamá chora porque papá morreu! Simão, cinco anos e meio, vira-se para a irmã e diz; "Não, não morreu: foi ficar junto com Deus".  

Suzana 20 de Setembro de 1981. 

PS. Se me é permitida uma nota autobiográfica. Quando em 1997 me foi diagnosticada a primeira das doenças que a seguir se sucederam ao longo dos anos, (tratava-se da hepatite C) o médico me disse sem rodeios que para mim a vida mudava e me devia conformar. Lembro que, depois de um momento de transtorno e um aceno de rebelião, veio-me à mente o Demba e "a sua lição de catecismo". Recuperei imediatamente a serenidade. Que nunca mais perdi. E foi um meu catequista camponês, analfabeto, quem mo ensinou, Luís Demba, nascido, crescido e falecido em Suzana... que até pensava que não podia ser catequista porque não sabia falar em público.....  

Suzana 29 de Julho de 2016.

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