terça-feira, 27 de setembro de 2016

Kutujenuió



Cristãos exemplares

KUTUJENUIÓ

Saboreava o vinho de palma bebendo a pequenos tragos do seu pote de barro, gozando os últimos raios do sol que já se ia apagando. Os poucos que regressando a suas casas passavam pelo caminho ao lado cumprimentavam-no respeitosamente: Kutujenuió era um dos anciãos de Ejin, a sua aldeia, era mesmo das mais altas autoridades: o Colégio dos anciãos confiara aos seus cuidados os jovens iniciandos. Era abençoado por Deus e pelos espíritos. Já andava pelos oitenta anos, gozava de boa saúde, sua mulher, Anjiroken, era a mãe de todos os seus filhos e ninguém, a Ejin podia gabar-se de ter dois filhos machos, os dois sobreviventes às variadas epidemias que haviam ceifado as outras crianças; não só, mas o mais velho dos dois já lhe dera três netos também machos, os três viventes e a crescerem muito bem; e tudo fazia prever que não seriam os últimos, pois seus pais eram ainda novos e em boa saúde.
Num piscar de olhos ao pôr-do-sol sucedera a noite: Enquanto a mulher preparava o jantar, Kutujenuió tirou umas brasas do fogo e acendeu o cachimbo. O tabaco aumentara de preço os últimos anos, mas os seus filhos tinham iniciativas várias: pescavam, caçavam e sempre tinham algo para dar em troca de uma folha de tabaco. Sijupelankin, o segundo dos filhos machos, era ainda novo. Já tinha a namorada e devia pensar em construir sua casa mas também encontrava a forma de não deixar faltar nada ao velho pai. Quanto ao primogénito, Enguiria, que se fazia chamar António, era mesmo inigualável: alto um pouco acima do normal, maciço, calmo, duma força serena e razoável: tinha todas as qualidades para lhe suceder no colégio dos anciãos da tabanca.

Naquela noite, depois do jantar, voltou a sentar-se junto do fogo e aspirava as últimas bocadas com o inseparável cachimbo antes de se retirar a dormir. António aproximou-se dele, deu-lhe mais uma folha de tabaco e disse que queria falar com ele.
- Pai, começou, fiz um sonho, mas não sei o que quer dizer aquilo que eu vi.
- Conta-me, filho, talvez te possa ajudar,
- Eis o sonho. Eu ouvia gente a cantar. Fui na direçã0ne que vinham as vozes e cheguei perto de uma grande casa. No interior havia luz. Parei junto duma das portas para olhar para dentro. Havia muita gente, todos eles contentes e olhavam todo na mesma direção. Eu também olhei na mesma direção e vi que diante deles havia um homem, um branco. Logo senti uma grande alegria no meu coração. Não sei porquê, mas estava contente de estar junto deles Não saberia dizer se reconheci alguns daqueles rostos, mas os sentia muito próximos de mim, como se os conhecesse a todos, como... mesmo como irmãos, Acordei. Tudo desaparecera, mas não desapareceu a alegria que eu sentia dentro de mim. O que será? Talvez Deus, Emitai, queira me dizer alguma coisa?

Kutujenuió ficou calado, pensativo. O que seu filho vira em sonhos ele sabia o que era. Os Portugueses, em ocasião dos recorrentes conflitos que ensanguentavam suas tabancas, costumavam levar reféns, ou prisioneiros, a Bissau. Uma vez regressados contavam o que tinham visto naquela "terra branca" e entre o que se dizia havia algo de muito parecido com o que o António vira em sonhos. Eram os cristãos que se reuniam para suas cerimónias. Não eram só brancos, havia pepeis, Manjak e outros, mas Jóla como eles não. Cantavam, rezavam, mas não se compreendia nada do que eles diziam, porque usavam a língua dos brancos. Ele, Kutujenuió, nunca ousou pedir explicações, mas tudo isto sempre lhe fizera muita impressão....
  António observava o pai à espera que lhe desse uma resposta.
Kutujenuió buscava nas suas memórias tentando perceber que ligação podia haver entre quanto os colegas viram anos antes de olhos abertos e o que o filho acabava de ver em sonhos, experimentando, como dizia, grande alegria.
Lembrou que desde uns anos em Suzana, a tabanca principal de sua região, viviam uns brancos diferentes dos outros. Chamavam-nos de "padres". Tinham construído uma casa grande, melhor, mais casas, mas uma era maior das outras, cabia nela muita gente duma vez. Não só: ele ouvira também que naquela casa costumava juntar-se mais gente de Suzana Jóla Felupe como ele, e cantavam e rezavam mais ou menos como os que viram a Bissau uns anos antes.
Mas... havia algo de novo: o que eles diziam, o que eles cantavam se entendia, porque falavam a sua língua, o Jóla Felupe e chamavam a Deus com o mesmo nome com que eles aprenderam a chamá-lo: Emit ai. Talvez, se fosse ter com eles seu filho encontraria alguma explicação.
"Filho, disse enfim, vai a Suzana. Tu sabes onde se encontra a que chamam "Míson". Talvez possas encontrar lá o que viste em sonhos..."

António teve um momento de hesitação.
Ele também sabia que a Suzana havia a "missão", com os padres. Também os via passar no rio para ir visitar as outras tabancas, mas nunca os vira reunidos com muita gente dentro uma casa grande, como lhe acontecera em sonho. O que ouvira dizer era que os anciãos de Suzana e de outras tabancas não viam com agrado que um grupo de jovens seguia aqueles brancos tão diferentes dos outros. Segundo o que ouvira também o tinham espancado. Ele conhecia uns deles e sabia que tiveram que abandonar sus casas construídas há pouco na tabanca para saírem da mesma fora reconstruir suas casas perto da missão: expulsados pelos grandes da tabanca! Contou ao pai quanto sabia manifestando seus receios.
"Meu filho, não temas. vai, disse-lhe o pai, se o que viste em sonhos vem de Deus, vai ver de que se trata: Se Deus fala, não fala à toa."

No dia seguinte o sol ainda não despontava e António já estava a caminho de Suzana. Chegado ao rio deu um suspiro de alívio: as duas canoas lá estavam, uma de cada lado. Pegou no remo, entrou na canoa e atravessou. Chegado ao outro lado, rebocou a outra canoa para o lado de onde viera, voltou a atravessar, amarrou a canoa, pegou o remo: tudo estava certo, as duas canoas estavam outra vez uma de cada lado, prontas para quem chegasse, num ou noutro lado, para atravessar.
Apressou o passo através do mato. O sol estava saindo, o ar ainda era fresco e o caminhar não custava. Ao chegar perto de Suzana não queria acreditar aos seus ouvidos. Sim, ouvia cantar e o som vinha mesmo do lado da missão. Apressou ainda mais o passo, já entrevia a missão e ouvia distintamente as vozes. E os tambores a acompanhar. Mas ainda não via ninguém.
Entrou no quintal da missão. As vozes vinham da casa grande. Aproximou-se trepidante, encostou-se a uma janela e sim, aquela alegria que sentira em sonhos começou a brotar-lhe do fundo do coração. O pai tivera razão! Timidamente entrou e encostou na porta. foi convidado a se sentar.
Escutava o cântico. Compreendia as palavras: gostou delas, Sentiu que era ali mesmo que devia estar. Encontrou amigos, conversaram, fez muitas perguntas e entendeu que calhou mesmo ele chegar num domingo, o dia grande do Senhor. Perguntou também pela hostilidade dos grandes e teve as respostas, entre as quais uma que o deixou maravilhado: o facto de encontrarem tais dificuldades não desencorajava estes seus amigos: sentiam-se mais juntos e se ajudavam, solidais com o padre que tinha suas dificuldades por parte dos outros brancos, os soldados.

No caminho de regresso António avançava rapidamente, impaciente de contar ao pai o que lhe acontecera. Já estava decidido a entrar naquele "caminho". Só receava aas consequências eventuais para o pai e para a velha mãe.
"Não temas por mim, meu filho, disse-lhe o pai, nem pela tua velha mãe. Se este é o caminho que Emitai marcou para ti, segue-o, estamos todos em suas mãos".
No volver de poucos meses nascia uma pequena comunidade, amigos de António, homens e suas mulheres, jovens famílias cheias de vida.
Os anciãos da tabanca estavam preocupados. Os colegas das outras tabancas reprendiam-nos por não fazerem nada no sentido de travarem o caminho a estes seus filhos que seguiam os maus exemplos dos de Suzana, abandonando as tradições dos antigos.
Mas como podiam conseguir algo se até os filhos de Kutujenuió estavam metidos naquilo?
Sem discutir o assunto em sua presença, começaram as represálias. Não havia festa em que não se cantassem dísticos para zombar "dos da missão".  Aos poucos a coisa não ficou limitada às festas, mas se tornou um hábito quase cotidiano. Era insuportável.

A coisa piorou quando os anciãos anunciaram a pior das represálias: se "os da missão" continuavam em sua atitude, nunca mais seriam aceites na celebração da iniciação, o "fanado", que acabava de fazer sua entrada mas festas da tabanca.
António não se deixou intimidar. Apoiado pelo velho pai, construi uma nova casa mesmo perto da pequena casa que acabavam de construir para o padre e mudou para lá. Outros o seguiram.
Era a estratégia já experimentada em Suzana e noutras tabancas, A única maneira para não responder às provocações era a de "chegar mais além" um bocadinho, para não incomodar.

A reação dos grandes foi duríssima e abateu-se sobre quem era suspeitado se inspirar e de apoiar toda a manobra: Kutujenuió. Foi degradado, despojado de toda a autoridade e expulsado da tabanca. Era como morrer. Veio-lhe a faltar todo o seu mundo, o mundo em que nascera e vivera durante os oitenta anos da sua vida. Para os seus colegas, ele não existia mais. Todas as vezes que os tambores chamavam os grandes a reunião, nada lhe era comunicado: que ficasse onde estava e era melhor para todos. Ele vinha a saber algo só depois de tudo. E sofria.
Foi viver com a mulher em casa do filho, o António, que lhe reservou uma parte da sua habitação.
Foi assim que nos tornamos vizinhos, nos dias que eu passava na tabanca.
As crianças enchiam a casa de alegria e eram cheios de carinho para com os avós. Também os das outras comunidades não faltavam de lhes dar todo o respeito.
Mas ele sofria e mo confiava. Sofria pelo isolamento a que fora condenado pelos colegas, sofria por saber que os netos seriam excluídos dos ritos da iniciação...  Já não era de muitas palavras, mas agora quase virara a mudo!....
Ele via os filhos contentes pelo caminho escolhido. Ouvia o que lhe contavam a respeito de Jesus, escutava os cânticos e as explicações que até os netos lhe davam... mas isto lhe parecia pertencer a um outro mundo: coisas de meninos, ele era velho, já não tinha nada com aquilo.
Verdade é que sua mulher, Anjiroken, acompanhava aquilo tudo mais de perto e parecia gostar, conforme às vezes lhe confiava. Mas ela era mais nova. E era mulher.

E veio o dia dos primeiros batizados primeiro de Maio de 1980. Seu filho, o António, era o chefe de fila. Mas não era para ele que Kutujenuió olhava em continuidade. Na altura vieram do Senegal render-nos visita alguns cristãos e catequistas que encontráramos aquando dos primeiros batizados da comunidade de Yutou, mesmo além fronteira. Entre eles havia uns... de cabelos brancos. Jã não eram só rapazinhos.
Kutujenuió ficou fulgurado. Não tirava os olhos daqueles "colegas" que ele via contentes de estarem no caminho dos seus filhos. Mas o caminho, via-o mesmo, era para ele também!...
Chamei-o. Conversámos. Perguntou-me. Conversámos com os hóspedes seus "colegas".
Para ele foi uma libertação, um dia memorável: abria-se uma esperança.
Perguntei aos filhos se notaram alguma mudança no pai. Eram radiantes, o pai começara a fazer perguntas!
Quando lhe dissemos que se podia preparar com sua mulher para ser batizado, estava fora de si."Tudo quanto os nossos filhos acreditam, nós também acreditamos: não é assim, mulher?"
"Claro que sim" retorquia Anjiroken que, segundo quanto me confiara, esperava desde tempo aquele dia.
Os olhos de Kutujenuió voltaram a brilhar. O sorriso voltou a seus lábios. contente como uma criança. Queria aprender, queria saber, queria ouvir falar de Jesus.
"Já não me importa se me expulsaram da minha tabanca, já não me importa de não saber o que se decide no conselho dos anciãos: eu encontrei a Jesus. Basta."
E solenemente pediu-me para ser batizado.

"Olha, disse, os meus filhos estão-me ensinando o caminho de Jesus. Eu escuto e escuto também tudo o que tu dizes. Mas eu sou velho e não consigo reter aquilo tudo. Também a minha mulher escuta, compreende um bocado mais do que eu, mas quando lhe peço que me explique algo, diz que sim entendeu, mas non consegue repetir. Mas digo-te outra vez que tudo o que os meus filhos creem, eu creio também; o caminho que eles tomaram, eu tomo-o também, tudo o que eles querem, eu quero também. Só que eu sou velho e não tenho mais forças. Mas Emitai sabe, e sabe também que já não me importa nada daquilo que me fizeram. Cercaram-me da minha tabanca, sofri muito. Mas agora estou contente por ter encontrado este caminho, o caminho de Jesus, por estar aqui junto com meus filhos e com os filhos de meus filhos. Olha quantas casas surgiram aqui em volta, perto da tua casa: é toda gente que entrou neste caminho: conheço-os a todos, posso chamá-los meus e filhos; e vivem em paz. A mim não me restam muitos anos para viver. Dá-nos também, a mim e à minha mulher a água da vida e a seguir esperarei a Jesus que me vem chamar para levar-me consigo: já não me falta mais nada; não é verdade, mulher?" Concluiu dirigindo-se a Anjiroken, que concordou iluminando-se com um sorriso.
Foram batizados a santo Estêvão daquele mesmo ano. Uma festa memorável, com a presença dos tais amigos de Senegal como convidados especiais.
Viveu ainda três anos e via-se mesmo a sua felicidade, também quando a idade começou a fazer sentir seu peso, impiedosamente. Já não podia vir à igreja, mas esperava em casa Jesus: comungava mesmo durante a Missa, quando lhe levávamos a Eucaristia numa pequena procissão. Como brilhavam seus olhos quando recebia Jesus! Eu sempre ficava encantado1
Quis receber a Unção dos enfermos: não devia faltar-lhe nada do que o podia ajudar a encontrar Jesus. Recebeu o sacramento junto com a mulher, rodeados pela comunidade na Missa o domingo, com as crianças a festejarem os avós "que iam encontrar Jesus.
Quando me despedi dele quis dizer-me ainda que estava contente, que não lhe faltava mais nada, só esperava Jesus que o viesse chamar. E Jesus veio, cinco dias depois. Ficou connosco a lembrança, ainda mais, a "visão" da paz que Kutujenuió alcançou, liberto de qualquer saudade do que fora a sua vida antes de ter encontrado a Jesus.

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