segunda-feira, 6 de junho de 2016

O catequista testemunha da misericordia de Deus

Tema de reflexão a caminho do Sínodo 




Antes de mais, uma premissa. Com esta palestra não tenho a pretensão de dizer coisas novas, quero simplesmente partilhar a minha experiência de muitos anos como catequista. Neste momento sou pároco de Nhoma (no setor de Oio), onde tenho também a graça de dar catequese. Digo “graça”, porque para mim anunciar a Boa-Nova não é um dever, uma obrigação, mas é uma vocação, um dom (e também – como irei mostrar – um grande desafio). Falo portanto por experiência direta, tendo anunciado a palavra em muitos contextos diferentes: na Guiné e fora da Guiné, em salas paroquiais e prisões, na praça e no mato. Para a parte mais doutrinal, irei apoiar-me nos ensinamentos dos últimos papas, em particular papa Francisco que publicou recentemente uma exortação apostólica muito bonita, Evangelii gaudium/A alegria do Evangelho, sobre a Nova Evangelização. Quanto ao conteúdo do tema, está dividido em duas partes: a 1ª parte trata da misericórdia em sentido bíblico e nas suas implicações praticas para a Igreja; a 2ª parte expõe a figura do catequista como testemunha desta misericórdia. 

1.      A misericórdia
O termo vem de duas palavras latinas: miser (donde o português: miserável, miséria) e cor, cordis (coração); a misericórdia consiste no coração que se abre à miséria, ao miserável; outros sinónimos de misericórdia são clemencia, indulgência, compaixão, perdão. A misericórdia é uma palavra-chave da Sagrada Escritura. Em dois sentidos: como atributo de Deus e como vivência da Igreja.
a)      Como atributo de Deus. O Deus da Bíblia, o Deus do povo de Israel revela-se desde o início como misericordioso, clemente, compassivo. No diluvio universal, por ex., ele tinha decidido acabar com a humanidade, mas depois fica arrependido e declara: “De futuro, não amaldiçoarei mais a terra por causa do homem, pois as tendências do coração humano são más desde a juventude, e não voltarei a castigar os seres vivos, como fiz” (Gn 8, 21). É famoso também o coloquio entre Deus e Abraão, em que este último pede ao Todo-Poderoso de mostrar-se clemente com as cidades corruptas de Sodoma e Gomorra: a negociação passa de 50 justos para 40, 30, 20 até 10. Sabemos qual será a conclusão (ver Gn 18, 16-33). Certamente um ponto alto da revelação de Deus encontra-se em Ex 34. Moisés tinha pedido a Deus de “mostrar-lhe a sua glória”. Deus aceita, mas precisa que Moisés não poderá vê-lo diretamente “na cara”, mas só “de costas”. E ele passa em frente de Moisés e pronuncia o seu nome: “Senhor, Senhor, Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio de bondade e de fidelidade, que mantém a sua graça até à milésima geração, que perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado…” (vv 6-7).
No entanto, é em Jesus, o Filho de Deus manso e humilde de coração, que vimos a plenitude da misericórdia de Deus: Ele é misericórdia em ação. Toda a sua vida é um dom contínuo, um oferecer-se aos outros sem limites. Como diz o papa Francisco: “…A sua pessoa não é senão amor, um amor que se dá gratuitamente. O seu relacionamento com as pessoas, que se abeiram d’Ele, manifesta algo de único e irrepetível. Os sinais que realiza, sobretudo para com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e atribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia. Tudo n’Ele fala de misericórdia. N’Ele, nada há que seja desprovido de compaixão.” Em todas as circunstâncias, o que movia Jesus era apenas a misericórdia, com a qual lia no coração dos seus interlocutores e dava resposta às necessidades mais autênticas que tinham. A vocação de Mateus, só para dar um exemplo, se insere no horizonte da misericórdia. Ao passar diante do posto de cobrança dos impostos, os olhos de Jesus fixaram-se nos de Mateus. Era um olhar cheio de misericórdia que perdoava os pecados daquele homem e, vencendo as resistências dos outros discípulos, escolheu-o, a ele pecador e publicano, para se tornar um dos Doze. O ensinamento de Jesus é rico de parábolas centradas na misericórdia de Deus para com o homem pecador, ao qual ele é chamado a responder com um idêntico amor de misericórdia. Lembremos apenas a parábola do perdão mutuo no cap. 18 de Mateus, conhecido como o “discurso sobre a comunidade” (vv. 21-35). Nesta parábola resulta claro que o perdão entre os irmãos deve ser pleno e incondicional, tendo a sua origem no perdão sem reservas do Pai. E Ele perdoa sempre.
b)    A misericórdia é também uma dimensão importante, diria fundamental, da vivência da Igreja. Para Jesus, a perfeição cristã consiste justamente em “ser misericordiosos como o Pai” (Lc 6, 36). Dizia o papa S. João Paulo II: « A Igreja vive uma vida autêntica quando professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salvador, das quais ela é depositária e dispensadora ». Por seu lado, o papa Francisco afirma: “A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de cada pessoa. … No nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na nova evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo e uma acão pastoral renovada. É determinante para a Igreja e para a credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia. A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem irradiar misericórdia.” O mesmo insiste que a misericórdia deve marcar toda a nossa pastoral, ao ponto que qualquer pessoa deve poder encontrar nas nossas paróquias, comunidades, grupos e movimentos um “oásis de misericórdia”.

2.      O catequista testemunha da misericórdia de Deus
 Aquilo que vale para toda a Igreja vale também para os cristãos, todos os cristãos, incluindo os catequistas. Perguntemo-nos: Os catequistas têm um jeito próprio, uma maneira original de viver a misericórdia? Como é que um catequista é misericordioso e compassivo? Eis a pergunta à qual devemos responder agora.
Comecemos com uma observação geral: todos os cristãos, em virtude do batismo, são catequistas. Todos! Ninguém excluído. Significa que quem dá catequese não está a fazer um favor ao padre, ou à irmã: não, ele cumpre simplesmente o seu dever, vive a sua vocação batismal! Nada mais. Papa Francisco: “Em virtude do Baptismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se discípulo missionário (cf. Mt 28, 19). Cada um dos baptizados, independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé, é um sujeito activo de evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema de evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo fiel seria apenas receptor das suas acções.
Dito isso, vamos ver agora como um catequista é testemunha da misericórdia de Deus. Mas o que significa “testemunhar, dar testemunho”? É sabido que testemunhar é muito mais do que simplesmente ensinar; ensinar é transmitir conteúdos em vista da memorização e da repetição. A catequese não é apenas ensino, memorização: é partilhar a própria experiencia de vida, a própria caminhada de fé com outras pessoas, com os catequizandos. Por isso a catequese não pode ser uma profissão, um trabalho: é uma vocação. É preciso “ser catequista”, não simplesmente “trabalhar como catequista”. Um verdadeiro catequista não se limita a “dar catequese” (uma ou mais vezes por semana); ele é catequista sempre: em casa, na igreja, na rua. S. Francisco de Assis gostava de dizer aos seus confrades: “Pregai sempre o Evangelho e, se for necessário, também com as palavras”. Certo dia – contam os biógrafos –  ele saiu pela cidade com um confrade para evangelizar e depois de terem dado algumas voltas às ruas, voltaram para casa. O irmão perguntou então ao santo: “Quando é que vamos começar a trabalhar?” E o santo: “Já fizemos! A nossa passagem em silêncio pelas ruas da cidade valeu mais que todos os discursos”. 
Se isso é verdade (que dar catequese é uma vocação), então um catequista sério prepara a sua catequese com muita antecedência. Procura ser criativo, usando cartazes, ditados, contos, cantigas. Nisto os nossos irmãos evangélicos são especialistas, produzindo muito material: a Bíblia em desenhos, cânticos facilmente decoráveis, filmes, subsídios variados…  eu não posso limitar-me a repetir aquilo que está no texto de catequese! Pior ainda quando o catequista se apresenta diante dos catequizandos sem ter preparado nada e começa a estudar o texto naquela hora. Isto é banalizar a catequese, reduzi-la a puro ensino escolar, a um exercício de memorização.
É tempo agora de dedicar tempo à figura do catequista como instrumento de misericórdia, mensageiro do amor do Pai. Limito-me a algumas anotações, porque o tema é muito vasto.
a)      Um catequista é misericordioso, vive a misericórdia como todos os outros cristãos. Evidentemente ele deve envolver de um amor especial os seus catequizandos, para os quais ele é verdadeiramente um “pai na fé”, um acompanhador, um companheiro. Então, nenhuma atitude autoritária, despótica, mas muita paciência e uma grande capacidade de escuta (também do “não-dito”).  Aqui vale o exemplo de Jesus ressuscitado que se aproxima dos discípulos de Emaús: pergunta, escuta, pergunta de novo para compreender melhor, entra com eles e partilha o pão (ver Lc 24, 13-35). Jesus não julga, caminha ao lado, se deixa envolver nos seus discursos, mas também ajuda a fazer uma outra leitura da realidade, abre os seus espíritos à fé no Ressuscitado.
b)     O catequista misericordioso introduz os catequizandos na arte difícil do perdão dado e recebido. O grupo da catequese deveria tornar-se uma escola de reconciliação. Entre irmãos de fé é mais fácil reconhecer os próprios erros e pedir perdão. Quantas vezes eu fiquei comovido diante de um preso que pedia perdão aos seus companheiros em nome de Jesus.
c)      O bom catequista evita de cair na ratoeira do perdão “barato”, “fácil”. Vou tentar explicar-me melhor. Em nome da misericórdia (“Estamos no ano da misericórdia!”), muitos catequizandos exigem do padre, da irmã ou do catequista que feche um olho (ou os dois) sobre as faltas na catequese, a ignorância no conhecimento da doutrina, os atrasos, etc. Mas eu me pergunto: Porque é que nós exigimos tanta pontualidade, disciplina e rigor nas nossas escolas, e não exigimos o mesmo na catequese? Será que a catequese é menos importante que a escola? Atenção a não confundir a bondade com perdão fácil. O Deus da Bíblia é misericordioso e compassivo, mas é também justo (e exigente!). Ele está sempre pronto a perdoar, mas também exige arrependimento sincero e conversão: “Eu não te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar” (Jo 8, 10).


Fr. Renato Chiumento
 

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