Antes de mais, uma
premissa. Com esta palestra não tenho a pretensão de dizer coisas novas, quero simplesmente
partilhar a minha experiência de muitos anos como catequista. Neste momento sou
pároco de Nhoma (no setor de Oio), onde tenho também a graça de dar catequese.
Digo “graça”, porque para mim anunciar a Boa-Nova não é um dever, uma
obrigação, mas é uma vocação, um dom (e também – como irei mostrar – um grande
desafio). Falo portanto por experiência direta, tendo anunciado a palavra em
muitos contextos diferentes: na Guiné e fora da Guiné, em salas paroquiais e
prisões, na praça e no mato. Para a parte mais doutrinal, irei apoiar-me nos
ensinamentos dos últimos papas, em particular papa Francisco que publicou
recentemente uma exortação apostólica muito bonita, Evangelii gaudium/A alegria do Evangelho, sobre a Nova
Evangelização. Quanto ao conteúdo do
tema, está dividido em duas partes: a 1ª parte trata da misericórdia em sentido
bíblico e nas suas implicações praticas para a Igreja; a 2ª parte expõe a
figura do catequista como testemunha desta misericórdia.
1. A misericórdia
O termo vem de duas palavras latinas: miser (donde o português: miserável, miséria) e cor, cordis (coração); a misericórdia consiste no coração que
se abre à miséria, ao miserável; outros sinónimos de misericórdia são clemencia, indulgência, compaixão, perdão.
A misericórdia é uma palavra-chave da Sagrada Escritura. Em dois sentidos: como
atributo de Deus e como vivência da Igreja.
a)
Como atributo de Deus. O Deus da Bíblia, o Deus
do povo de Israel revela-se desde o início como misericordioso, clemente, compassivo. No diluvio universal, por
ex., ele tinha decidido acabar com a humanidade, mas depois fica arrependido e
declara: “De futuro, não amaldiçoarei
mais a terra por causa do homem, pois as tendências do coração humano são más
desde a juventude, e não voltarei a castigar os seres vivos, como fiz” (Gn
8, 21). É famoso também o coloquio entre Deus e Abraão, em que este último pede
ao Todo-Poderoso de mostrar-se clemente com as cidades corruptas de Sodoma e
Gomorra: a negociação passa de 50 justos para 40, 30, 20 até 10. Sabemos qual
será a conclusão (ver Gn 18, 16-33). Certamente um ponto alto da revelação de
Deus encontra-se em Ex 34. Moisés
tinha pedido a Deus de “mostrar-lhe a sua glória”. Deus aceita, mas precisa que
Moisés não poderá vê-lo diretamente “na cara”, mas só “de costas”. E ele passa
em frente de Moisés e pronuncia o seu nome: “Senhor, Senhor, Deus misericordioso e clemente, vagaroso na ira, cheio
de bondade e de fidelidade, que mantém a sua graça até à milésima geração, que
perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado…” (vv 6-7).
No entanto, é em Jesus, o Filho de Deus manso e humilde
de coração, que vimos a plenitude da misericórdia de Deus: Ele é misericórdia
em ação. Toda a sua vida é um dom contínuo, um oferecer-se aos outros sem
limites. Como diz o papa Francisco: “…A sua pessoa não é senão amor, um amor
que se dá gratuitamente. O seu relacionamento com as pessoas, que se
abeiram d’Ele, manifesta algo de único e irrepetível. Os sinais que realiza,
sobretudo para com os pecadores, as pessoas pobres, marginalizadas, doentes e
atribuladas, decorrem sob o signo da misericórdia. Tudo n’Ele fala de
misericórdia. N’Ele, nada há que seja desprovido de compaixão.” Em todas as
circunstâncias, o que movia Jesus era apenas a misericórdia, com a qual lia no
coração dos seus interlocutores e dava resposta às necessidades mais
autênticas que tinham. A vocação de Mateus, só para dar um exemplo, se
insere no horizonte da misericórdia. Ao passar diante do posto de cobrança dos
impostos, os olhos de Jesus fixaram-se nos de Mateus. Era um olhar cheio de
misericórdia que perdoava os pecados daquele homem e, vencendo as resistências
dos outros discípulos, escolheu-o, a ele pecador e publicano, para se tornar um
dos Doze. O ensinamento de Jesus é rico de parábolas centradas na misericórdia
de Deus para com o homem pecador, ao qual ele é chamado a responder com um
idêntico amor de misericórdia. Lembremos apenas a parábola do perdão mutuo no
cap. 18 de Mateus, conhecido como o “discurso sobre a comunidade” (vv. 21-35).
Nesta parábola resulta claro que o perdão entre os irmãos deve ser pleno e
incondicional, tendo a sua origem no perdão sem reservas do Pai. E Ele perdoa
sempre.
b) A misericórdia é também uma dimensão
importante, diria fundamental, da vivência da Igreja. Para Jesus, a perfeição
cristã consiste justamente em “ser misericordiosos como o Pai” (Lc 6, 36).
Dizia o papa S. João Paulo II: « A Igreja vive uma vida autêntica quando
professa e proclama a misericórdia, o mais admirável atributo do Criador e do
Redentor, e quando aproxima os homens das fontes da misericórdia do Salvador,
das quais ela é depositária e dispensadora ». Por seu lado, o papa Francisco
afirma: “A Igreja tem a missão de anunciar a misericórdia de Deus, coração
pulsante do Evangelho, que por meio dela deve chegar ao coração e à mente de
cada pessoa. … No nosso tempo, em que a Igreja está comprometida na nova
evangelização, o tema da misericórdia exige ser reproposto com novo entusiasmo
e uma acão pastoral renovada. É determinante para a Igreja e para a
credibilidade do seu anúncio que viva e testemunhe, ela mesma, a misericórdia.
A sua linguagem e os seus gestos, para penetrarem no coração das pessoas e
desafiá-las a encontrar novamente a estrada para regressar ao Pai, devem
irradiar misericórdia.” O mesmo insiste que a misericórdia deve marcar toda a
nossa pastoral, ao ponto que qualquer pessoa deve poder encontrar nas nossas
paróquias, comunidades, grupos e movimentos um “oásis de misericórdia”.
2. O
catequista testemunha da misericórdia de Deus
Aquilo que vale para toda a Igreja vale também
para os cristãos, todos os cristãos, incluindo os catequistas. Perguntemo-nos:
Os catequistas têm um jeito próprio, uma maneira original de viver a
misericórdia? Como é que um catequista é misericordioso e compassivo? Eis a
pergunta à qual devemos responder
agora.
Comecemos com uma observação geral:
todos os cristãos, em virtude do batismo,
são catequistas. Todos! Ninguém excluído. Significa que quem dá catequese
não está a fazer um favor ao padre, ou à irmã: não, ele cumpre simplesmente o
seu dever, vive a sua vocação batismal! Nada mais. Papa Francisco: “Em virtude do Baptismo recebido, cada membro do povo de Deus tornou-se
discípulo missionário (cf. Mt 28, 19). Cada um dos baptizados,
independentemente da própria função na Igreja e do grau de instrução da sua fé,
é um sujeito activo de evangelização, e seria inapropriado pensar num esquema
de evangelização realizado por agentes qualificados enquanto o resto do povo
fiel seria apenas receptor das suas acções.
Dito isso, vamos ver agora como
um catequista é testemunha da misericórdia de Deus. Mas o que significa “testemunhar, dar testemunho”? É sabido
que testemunhar é muito mais do que simplesmente ensinar; ensinar é transmitir
conteúdos em vista da memorização e da repetição. A catequese não é apenas ensino,
memorização: é partilhar a própria experiencia de vida, a própria caminhada de
fé com outras pessoas, com os catequizandos. Por isso a catequese não pode ser
uma profissão, um trabalho: é uma vocação.
É preciso “ser catequista”, não
simplesmente “trabalhar como catequista”. Um verdadeiro catequista não se
limita a “dar catequese” (uma ou mais vezes por semana); ele é catequista
sempre: em casa, na igreja, na rua. S. Francisco de Assis gostava de dizer aos
seus confrades: “Pregai sempre o Evangelho e, se for necessário, também com as
palavras”. Certo dia – contam os biógrafos – ele saiu pela cidade com um confrade para
evangelizar e depois de terem dado algumas voltas às ruas, voltaram para casa.
O irmão perguntou então ao santo: “Quando é que vamos começar a trabalhar?” E o
santo: “Já fizemos! A nossa passagem em silêncio pelas ruas da cidade valeu
mais que todos os discursos”.
Se isso é verdade (que dar catequese é uma vocação), então um catequista
sério prepara a sua catequese com muita antecedência. Procura ser criativo,
usando cartazes, ditados, contos, cantigas. Nisto os nossos irmãos evangélicos
são especialistas, produzindo muito material: a Bíblia em desenhos, cânticos facilmente decoráveis, filmes,
subsídios variados… eu não posso
limitar-me a repetir aquilo que está no texto de catequese! Pior ainda quando o
catequista se apresenta diante dos catequizandos sem ter preparado nada e
começa a estudar o texto naquela hora. Isto é banalizar a catequese, reduzi-la
a puro ensino escolar, a um exercício de memorização.
É tempo agora de dedicar tempo à figura do catequista como instrumento de misericórdia, mensageiro do
amor do Pai. Limito-me a algumas anotações, porque o tema é muito vasto.
a)
Um catequista é misericordioso, vive
a misericórdia como todos os outros cristãos. Evidentemente ele deve envolver
de um amor especial os seus catequizandos, para os quais ele é verdadeiramente
um “pai na fé”, um acompanhador, um companheiro. Então, nenhuma atitude
autoritária, despótica, mas muita paciência
e uma grande capacidade de escuta
(também do “não-dito”). Aqui vale o
exemplo de Jesus ressuscitado que se aproxima dos discípulos de Emaús:
pergunta, escuta, pergunta de novo para compreender melhor, entra com eles e
partilha o pão (ver Lc 24, 13-35). Jesus não julga, caminha ao lado, se deixa
envolver nos seus discursos, mas também ajuda a fazer uma outra leitura da
realidade, abre os seus espíritos à fé no Ressuscitado.
b)
O catequista misericordioso introduz os
catequizandos na arte difícil do perdão
dado e recebido. O grupo da catequese deveria tornar-se uma escola de
reconciliação. Entre irmãos de fé é mais fácil reconhecer os próprios erros e
pedir perdão. Quantas vezes eu fiquei comovido diante de um preso que pedia
perdão aos seus companheiros em nome de Jesus.
c)
O bom catequista evita de cair na ratoeira do perdão “barato”, “fácil”. Vou tentar
explicar-me melhor. Em nome da misericórdia (“Estamos no ano da
misericórdia!”), muitos catequizandos exigem do padre, da irmã ou do catequista
que feche um olho (ou os dois) sobre as faltas na catequese, a ignorância no
conhecimento da doutrina, os atrasos, etc. Mas eu me pergunto: Porque é que nós
exigimos tanta pontualidade, disciplina e rigor nas nossas escolas, e não
exigimos o mesmo na catequese? Será que a catequese é menos importante que a
escola? Atenção a não confundir a bondade com perdão fácil. O Deus da Bíblia é
misericordioso e compassivo, mas é também justo (e exigente!). Ele está sempre
pronto a perdoar, mas também exige arrependimento sincero e conversão: “Eu não
te condeno. Vai e de agora em diante não tornes a pecar” (Jo 8, 10).
Fr.
Renato Chiumento
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